domingo, 11 de setembro de 2011

Ruy Castro e Heloisa Seixas falam hoje na Bienal sobre guia cultural.

Mesmo agendado para o fim de tarde, às 17h, depois da hora do almoço dominical, o debate “Lugares para conhecer antes de morrer”, hoje, no Café Literário da XV Bienal do Livro, fará roncar os estômagos da plateia quando o casal de escritores Heloisa Seixas e Ruy Castro relembrar as buchadas de cabrito, os pezinhos de porco ao coentro e os pratos de maniçoba, a feijoada paraense, sorvidos durante seus périplos pelo Brasil ou pelo mundo. Feitas a sós ou a dois, essas jornadas foram refeitas por escrito, a quatro mãos, nos capítulos de “Terramarear — Peripécias de dois turistas culturais” (Companhia das Letras), cujas 232 páginas vão além de iguarias gastronômicas. Como num diário aberto, cada viagem rememorada pelo livro — seja a passagem de Heloisa pelo Parque Güell, em Barcelona, ou a descrição de Ruy para a Bodeguita del Medio, em Havana — oferece um rodízio de alusões ao cinema, recordações musicais a quilo e saudades a self-service.

— Este livro fala sobre cidades e do quanto elas mudam a partir da soma da capacidade que o Ruy tem de armazenar informações com o meu poder de observação de detalhes aparentemente simples — diz Heloisa. — Não se aprende sobre um lugar conhecendo seus cartões-postais. Ruy, por exemplo, só foi ao Corcovado uma vez, nos anos 1990. Mas vamos sempre ao Arco do Telles, ao Pavilhão de São Cristóvão ou à Saara.

Cada local — seja Moscou, Berlim, Veneza, Manhattan, Buenos Aires ou Búzios — puxa uma referência: “Mas nem tudo em Woody Allen é Nova York, e, se você der um pulo ao número 162 na Rua 70 Leste, descobrirá o consultório de Michael Caine em ‘Vestida para matar’ (1980), de Brian De Palma — mas, se lembra do filme, talvez prefira não entrar”, escreve Ruy.

— Não se trata de um livro de viagens ou de um guia turístico. Ele é um livro sobre cultura, com foco em cidades, incluindo o Rio de Janeiro. Estamos, como a Heloisa definiu, na condição de detetives urbanos, explorando os espaços — diz Ruy, autor de livros como “O anjo pornográfico” e “Chega de saudade”. — Nós dois temos em comum a capacidade de andar. Uma vez, em Nova York, caminhamos por cem quarteirões, sem precisar botar os pés numa bacia d’água quando chegamos ao quarto. Às vezes, eu vou de Botafogo até a Praça Tiradentes a pé para observar a cidade.

Batizado em referência a uma coleção homônima da Cia. Editora Nacional iniciada nos anos 1930, que publicou em português as narrativas de aventuras assinadas por escritores como Edgar Rice Burroughs (“Tarzan”) e Jack London (“Caninos Brancos”), “Terramarear” resgata artigos e reportagens publicados em jornais e revistas nas duas últimas décadas. Todos foram revistos e até reescritos. Sete textos são inéditos.

— O critério de seleção era sempre o texto, não tanto a viagem. Era importante que ele guardasse histórias curiosas. Houve também um esforço em reunir histórias imaginárias. Meu texto sobre Sevilha, “Viagem à Mourama”, por exemplo, foi uma volta aos contos de fadas e histórias fantásticas que ouvi na minha infância — lembra Heloisa.

Já Ruy incluiu na seção das “viagens inventadas” o texto “Coelhos de cartola”, uma excursão à Cidade dos Desenhos Animados, chamada Toontown, uma espécie de Pasárgada cinéfila onde o Pernalonga e o Patolino são (ou parecem ser) amigos do rei, um certo camundongo octogenário chamado Mickey.

— Uma viagem deveria ser sempre um mergulho no desconhecido. Por isso, não entendo como alguém viaja a um lugar desconhecido e prefere comer pizza a provar a comida local. A maniçoba de Belém do Pará, com suas carnes, faz menos mal do que um hambúrguer do McDonald’s, feito com carne de 200 bois — diz Ruy, que começou na juventude a conhecer os lugares que descobriu no cinema.

Na godardiana década de 1960, a Paris da Nouvelle Vague foi seu ponto de partida.

— Em 1967, eu ganhei um prêmio literário que me garantiu uma viagem para estudar Literatura em Coimbra. Aguentei ficar por lá apenas uma semana. Peguei o dinheiro e, mesmo sem falar francês, fui passar um mês em Paris, procurar nas ruas os cenários dos filmes de Godard. Naquela época, não havia livros de cinema de referência e muito menos internet, com sites como o IMDB (Internet Movie DataBase). Era tudo feito no olho. Imagine o quanto uma viagem de 19 dias por outro país, quando não se tem compromissos, pode representar uma imersão na cultura local — diz Ruy, que incluiu no livro uma reportagem de tônus sexual feita das paisagens lisboetas para a “Playboy”. — Nos anos 1980, a revista vinha fazendo uma série de reportagens sobre o sexo em cidades, e eu sugeri que fizesse uma sobre Portugal. Logo que cheguei, ao entrevistar os portugueses, descobri a história de um certo Capitão Roby que, enquanto esteve preso, recebeu a visita de 70 mulheres, das quais 38 teriam feito sexo com ele no banheiro da penitenciária.

Já Heloisa optou por revisitar uma ida ao Festival da Juventude na União Soviética, em 1985, num avião da Segunda Guerra perfumado a mofo.

— Tem gente que só sabe se gosta de uma viagem quando confere suas fotos. Viajamos muito sem ter sequer uma câmera — diz a autora de “Contos mínimos”. — É preciso ver o mundo de olhos abertos.

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