A lembrança dos teus olhos gosta
de me pregar peças e me deixar atordoado.
Achei que essa noite ela não viria, mas ela estava apenas tomando um ar, preparando o novo ataque. Fui ver Gal cantando o mestre Tom e, enquanto aquele cristal de voz ia se instalando no meu coração urbano, trazendo todas as melodias, eis que ela chega, imperiosa, essa tua lembrança de olhos molhados. Depois que ela se infiltra, nada mais posso fazer, a não ser ficar quieto, respirando aqui e ali, enquanto ela desfila na passarela dos meus sonhos - e esses teus olhos trazem tanta coisa junto, que as imagens vêm chegando e vão se embaralhando, sem que eu possa impedir: é uma cor de mar depois da chuva, um verde que já nem é verde, mas que às vezes surpreende e me aprisiona no fogo da esmeralda, aquele brilho no coração da pedra. No meio da mata adormecida, que são esses teus olhos, surgem cidades inesperadas - os telhados de Praga, brilhando num sol tímido de inverno; Berlim aprisionada na onda de frio é vista do alto, talvez a visão do pelicano que ficou seu amigo, no zoológico de Amsterdam (não sei se eu cheguei a te dizer, algum dia, mas zoológico, prá mim, sempre foi um lugar muito triste. Não gosto do silêncio dos zoológicos). No meio de tanta cidade brotada do nada, fico eu, como quem está perdido, em busca de uma condução. Mas são coisas da vida e o grande segredo, como já nos ensinou Cecília Meireles é aprender com as primaveras a deixar-se cortar e a voltar sempre inteiro.
Agora é muito cedo ainda, ou muito tarde, e São Paulo dorme, embrulhada numa névoa cinzenta. Daqui a pouco, eu vou rasgar essa nuvem e voar para o Rio e já sei que esses teus olhos vão pousar comigo na pista do Santos Dumont. Por falar nele, eu soube outro dia que foi ele quem inventou o relógio de pulso, uma maneira simples de contar as horas na amplidão dos céus – porque estamos sempre contando as horas, não é mesmo? Eu conto cada momento, até entrar nos teus mistérios.
Gal voltou a cantar no meu coração. Fechei os olhos e lá veio a música, braços abertos sobre a Guanabara. Estou morrendo de saudades – uma saudade de cheiro, uma saudade de mato, aquele pedaço de verde que você trouxe e arranjou sobre uma pedra. Nesse dia você sorria muito, eu lembro. Tou com saudade do teu sorriso. Aquele que não me foi ofertado, mas que está no porta-retrato na frente da minha cama. Acordo e lá está você, a cabeça jogada de lado, num abandono de felicidade. Tou querendo tanto que você me oferte um sorriso, não deve ser tão difícil assim, não é? Mesmo porque eu quero sempre te dar o meu melhor sorriso (e você nunca está realmente bem vestido sem um sorriso, já dizia o homem do programa de rádio, naquele musical sobre a pequena órfã Annie, que assistimos em Londres. Você se emocionou no final e nós ficamos rindo, lembra? Pois é isso aí).
Estou usando o espaço da crônica prá te pedir um sorriso (os leitores são amigos e cúmplices e vão entender meu desvario). Tremo só de pensar que você pode se esquecer de ler minha página na quinta-feira, ou que o tempo acabe apagando a minha lembrança – não a pública que, vez ou outra, vai cruzar seu caminho numa foto de revista, ou numa nota de jornal, mas a lembrança do homem que sente saudades de você e que queria sentir outra vez o teu perfume e mergulhar na lagoa agitada dos teus olhos. Porque eles andam atrás de mim, não tenha dúvida, assombram a minha noite e ajudam a empurrar o carro do sol, quando nasce o dia.
Pode ser que tudo o que você tenha a me oferecer seja mesmo esse sorriso de encomenda. Se for esse o caso, eu vou guardá-lo na gaveta dos guardados e esperar que o tempo se encarregue do resto. Vai ficar lá, esse teu sorriso, voando sobre os telhados de Praga e os cristais da Boêmia, puríssimo e raro, como a voz de Gal cortando a noite e, vez ou outra, eu dou uma espiada e mato um pouco da saudade que me aperta. Mas há uma hora na vida em que a gente precisa ser adulto e olhar as coisas de frente, porque todas as palavras já foram atiradas para o alto e, se não caíram no lugar certo, foi por erro de cálculo e não por falta de vontade – tudo o que eu queria fazer era poesia, acredite.
Por falar em poesia, tenho lido coisas bonitas aqui e ali, tenho saído pouco, tenho tentado rir com amigos e tento descobrir com Ele que traçado é esse de linhas tortas, para escrever direito uma história que deveria ser de amor e só de amor, mas que toma rumos estranhos, assim de repente, contra a minha vontade, contra a sua vontade, como se outras vozes falassem por nós.
Estou escrevendo essa crônica fantasiada de missiva, porque os dias estão correndo cada vez mais rápidos e o século vinte vai se despedindo. Talvez você também queira se despedir, eu não sei. Mas sei que a lembrança dos teus olhos não me deixa quieto, mexe comigo, faz a minh’alma rebentar em flor, como a do poeta, e me acena de longe com a possibilidade de dias felizes.
Eu penso em você.
Se puder, dá uma ligada uma hora dessas. É sempre uma alegria ouvir a tua voz e, pelo que andei assuntando nos livros da vida, a isto se chama amor.
Um beijo. Miguel.
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