Tenho horror a ver filmes baseados em obras da literatura antes de ler o original. É como se me roubassem o delírio. Resisti cinco minutos na plateia de Anna Karenina, desastrosa versão bufa do romance de Tolstoi para o cinema. Tapei os olhos, se pudesse teria tapado os ouvidos, para evitar que o semblante do elenco se grudasse ao dos personagens.
Os poucos trechos que vi das chamadas do Oscar de Os Miseráveis já foram suficientes para deixar a marca. O tijolo me olhava havia meses da cabeceira da cama, Andréa Beltrão me atiçava a ler, mas a mídia maciça do musical acelerou o ímpeto de encarar as mil e tantas páginas antes que fosse tarde demais. Mesmo sem ter ido ao cinema, na minha imaginação Javert insiste em ser Russell Crowe e Valjean desfila ares de Wolverine.
Mas Victor Hugo é Victor Hugo, é maior que tudo. É Janete Clair e tratado socialista, é melodrama e narrativa histórica. Victor Hugo salvou a Notre Dame da ruína com o Corcunda, atraindo fundos para a recuperação do monumento. Na porta lateral esquerda da catedral, um corcundinha de pedra adorna a fachada em agradecimento.
Victor Hugo é a França e a humanidade. É o povo. De vez em quando acontece de um extraordinário talento explicar não só o seu tempo, mas o porvir.
Impossível, depois de conhecer Cosette, olhar para uma criança de rua e não sentir repulsa pela própria indiferença, a mesma dos burgueses de Montfermeil, que fazem vista grossa para a escravinha dos Thénardier.
Na abertura do conclave que escolheria o novo papa, acompanhei na TV as imagens ao vivo do Vaticano, enquanto lia a descrição de Victor Hugo do convento de Petit-Picpus, onde Valjean se esconde do oficial Javert.
O autor dedica um longo capítulo à condenação do claustro. Faz duras críticas à austeridade monástica e à adoração da morte: “O regime monacal, bom no começo da civilização, útil para a redução da brutalidade, é pernicioso à virilidade dos povos. [...] Os mosteiros, bons no século II, discutíveis no século XV, são detestáveis no século XIX”.
Eu, ali, admirando a Cúria em pleno século XXI, olhando com desconfiança a inexistência das mulheres e o celibato dos eclesiásticos, ciente dos últimos escândalos, me encontrei na repulsa de Victor Hugo.
Mas, depois de afirmar que “a tomada de hábito é um suicídio recompensado com a eternidade”, de cobrir o leitor de razões para renegar “uma filosofia que resume tudo no monossílabo não”, no apagar do sétimo livro de Cosette, o autor lança mão de um pequeno capítulo intitulado “Fé e lei”, no qual diz:
“Censuramos a Igreja quando saturada de intrigas, desprezamos o espiritual que não poupa o temporal, mas honramos sempre o homem que pensa.
Saudamos quem se ajoelha. Uma vez ao menos isso é indispensável ao homem. Desgraçado de quem não crê em nada”.
Para fechar, Hugo enaltece a fé.
Dois dias depois, meu orgulho patriótico sofreria o baque com a notícia de que o papa era argentino. E olha que eu adoro a Argentina. A vaidade besta desapareceu quando fui apresentada a Francisco.
Bento XVI era sinistro até quando sorria, faltava nele o carisma. Francisco o tem de sobra. Passei a admirar Bento XVI depois da renúncia. Não havia por que repetir o papel de santo mártir que João Paulo II encarnou como ninguém. A abdicação de Bento XVI faz da exceção a regra. Os futuros papas, uma vez privados de sua força física, se sentirão no direito e, até, no dever de se aposentar.
Francisco tem bochechas grandes, um sorriso relaxado, quebra protocolos e anda de van. Escolheu Francisco de Assis como guia depois que o cardeal brasileiro Claudio Hummes o aconselhou a não esquecer os pobres. O calor humano da figura de Francisco produziu, em mim, o mesmo efeito do capítulo VIII de Cosette, o de reconciliação.
A presença de João Paulo II nas canecas, chaveiros e retratos das vitrines das lojas de suvenir do entorno do Vaticano é esmagadora. Tenho certeza de que Francisco, já, já, vai dominar o comércio local.
E termino agradecendo a Nossa Senhora Cármen Lúcia a graça concedida ao Espírito Santo e ao Rio de Janeiro na questão dos royalties do petróleo.
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