Eles contam as transformações nas relações
com vizinhança, prédio e rua em que moram
RIO - O leiteiro já não passa por aquela rua sem saída da Zona Sul para anunciar o início do dia. Não há mais o soar do barulho das rodas das charretes nas pedras de paralelepípedo para acordar a vizinhança. Mas num antigo edifício da Rua General Glicério, em Laranjeiras, ainda existem moradores que, debruçados em suas janelas, guardam lembranças desse cotidiano de 50 anos atrás. São pessoas que têm, desde a infância, o mesmo endereço, algo que pode ser considerado pouco comum atualmente. Assim, as transformações da rua, dos prédios e dos laços de vizinhança são acompanhadas por testemunhas atentas, que nasceram, cresceram e casaram por ali.
O edifício é antigo, recuado e rodeado por jardins. No lugar da árvore de cacau, há um pé de jasmim. A entrada tem mármore majestoso. O elevador ainda mantém a porta pantográfica. Mas ao apertar o botão do andar da antiga moradora Monique Gifonni Pereira, uma gravação anuncia: "subindo, são 17h04". Alguns segundos depois, prossegue: "5º andar". A mistura do antigo com o moderno pode causar algum estranhamento, no entanto, para Monique, esta adaptação recente é um entretenimento.
- Há quem entre nesse elevador e não se sinta sozinho, afinal, a voz torna-se uma companhia até o andar de destino - diverte-se a advogada que mora no mesmo andar desde que nasceu, em 1958.
Até a data de seu casamento, Monique morava com os pais, no apartamento vizinho ao seu atual. A idéia de residir em outro prédio não lhe parecia atraente. Muito menos em outro bairro. Isso porque ela já conhecia toda a vizinhança, o dono da padaria, a vendedora da papelaria, os passageiros no ponto de ônibus... E também, não queria sair de perto da família.
- Hoje, meus pais são meus vizinhos de porta. Eu me sinto em casa desde que dobro a esquina para entrar na minha rua. Todos me conhecem, e existe uma relação de confiança muito bem estabelecida entre os que são antigos aqui no prédio e na rua - explica.
Quando jovem, Monique não costumava sair muito de casa. E por isso, ficava livre das broncas do antigo zelador, o seu Ventura, que cuidava muito bem do prédio e controlava as travessuras das crianças. Ela costumava assistir, da janela, os colegas pulando amarelinha, jogando queimado e futebol. Inclusive o engenheiro Fábio Keller da Costa, seu antigo e atual vizinho.
- A infância naquele tempo podia ser mais aproveitada. Não existiam grades, nem tantos portões, o que permitia que fizéssemos das calçadas bons campinhos de futebol - recorda o engenheiro.
Para Keller, a atual segurança dos edifícios, com grades, portas com sistemas de identificação, contribuiu bastante para a mudança nos laços entre vizinhos. Com a insegurança no espaço público, a casa passou a ser a principal opção de lazer que ganhou reforço com a entrada da internet que transformou ainda mais os contatos entre os adolescentes.
- Acho que hoje vivemos num mundo mais individualista. Antigamente, lembro de que um batia na porta da casa do outro para descer e jogar bola. Hoje, é menos comum esse tipo de relação. Os contatos entre moradores eram mais estreitos - recorda ele, que, hoje, ainda mantém amizade com dois vizinhos de infância, um deles, morador do edifício.
Keller foi morar no prédio da General Glicério quando tinha 4 anos, em 1958. Ao casar com a psicóloga Eline de Medeiros, em 1989, mudou-se de prédio, de rua, mas não de bairro. No novo endereço ficou por 8 anos. Em 1997, já com dois rebentos, resolveu voltar a residir em sua casa de infância para dar continuidade ao tipo de vida que seus pais lhe deram. Algumas adaptações foram feitas na estrutura do apartamento, mas as lembranças dos tempos de menino não saíram da casa: elas estão ainda guardadas nos móveis herdados da mãe e no piano de cauda do pai.
- Acho que esse retorno com a família para o apartamento deu novo sentido à casa. Claro que ainda tenho recordações de infância. De vez em quando lembro das brincadeiras no prédio, do seu Ventura, … Mas tudo isso é resgatado ao lado dos meus filhos e da minha mulher, o que torna esse passado diferente. O prazer de lembrar é maior junto a família que construí. E meus filhos tocam piano muito melhor... - gaba-se Keller.
"Descendo, são 19h40". A porta pantográfica é aberta, e o zelador Rubenilson é quem recebe a chegada do elevador, há mais de 30 anos.
- Acho que eu te conheço - diz o zelador para mim (sorrisos). Vi a sua mãe crescer e você nascer. Eram bons aqueles tempos em que todo mundo se conhecia. Hoje, em dia, nem nas feiras de sábado, que estão cada vez mais vazias de barracas, se encontra gente amiga.
Na entrada do edifício, no lugar do leiteiro, está um motoqueiro se identificando pelo interfone. Apesar de toda modernidade, há um tanto de nostalgia naquelas paredes, naquele edifício e na rua que contam histórias do tempo do paralelepípedo e da charrete.
Nenhum comentário:
Postar um comentário