quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

MANOEL CARLOS - Amizade carioca

Há duas semanas tivemos uma demonstração explícita de bairrismo no encontro habitual do Café Severino, que acabou se transformando numa crônica sobre violência urbana. São Paulo seria mais violenta que o Rio?
Não se chegou a um consenso, mas a discussão, pelo menos, não gerou violência entre nós. Afinal, não estávamos no nosso café para salvar o mundo, o Brasil, uma cidade que fosse, ou mesmo aquele pequeno trecho da Rua Dias Ferreira. Era apenas o encontro habitual entre amigos!
Amigos! Assim, de maneira exclamativa, essa palavra sagrada me traz à memória versos de Camilo Castelo Branco, o escritor português mais conhecido como autor do romance Amor de Perdição. No soneto, Camilo lamenta que, apesar de contar com muitos amigos, foi visitado por apenas um a partir do momento em que ficou cego. E por que essa ausência numa hora tão crucial da sua vida? Os tais amigos justificavam:
“Que vamos nós, diziam, lá fazer? se ele está cego não nos pode ver!”.
Apesar do acento bem-humorado de Camilo, os versos traduzem uma situação dolorosa. Mas voltemos ao Severino. O Fla-Flu (podemos chamar assim?) entre paulistas e cariocas ocupou-se naquela tarde da diferença entre os cidadãos das duas cidades no que toca à manifestação entre as pessoas, que constitui o que chamamos de laços de amizade.
Desta vez foi o Flávio, paulistano que está em visita ao Rio, que proclamou:
— Carioca não é bom amigo, mas apenas boa companhia.
Essa afirmação às vésperas de um bem-vindo verão causou indignação. O Raul, que é um tanto beligerante, reagiu em cima, sem sutileza:
— Para não pular no seu pescoço, vou fingir que não ouvi o que você acaba de dizer.
Flávio não deu trégua:
— Você fala, discorda, sente-se ofendido, enche a boca para dizer que está entre amigos, mas me diga quando é que vocês se visitaram em casa? Quando foi a última vez?
Todos nós trocamos um olhar de incompreensão. Perguntei:
— Não vejo o que tem uma coisa com outra.
— A relação é óbvia — garantiu-me Flávio. — Amigo, amigo verdadeiro, significa também casa, família, presença em festa de aniversário, em enterro, em missa de sétimo dia. Tudo que transpira amor, carinho, solidariedade.
O Raul não se conformava:
— Deixa de ser bobo, rapaz! Nós nos reunimos aqui há muitos anos. Visita doméstica é para as mulheres!
Já viram que o Raul voltava ao seu bairrismo e machismo exibidos na discussão sobre violência de duas semanas atrás. Flávio continuou:
— Amigo de café, de bar, de praia, não é amigo. Pode ser no máximo, repito, uma boa companhia. Em São Paulo as pessoas se visitam, as mulheres dos amigos também se tornam amigas, os filhos de uns e de outros brincam juntos, se relacionam. Tenho certeza de que muitos de vocês nem sequer sabem onde mora cada um desses “grandes” amigos.
— Temos uma visão mais democrática do que seja amizade — garantiu o Raul, meio enfezado.
— Pois a minha visão é radical. Vocês chamam de amigo a quem mal conhecem. Outro dia li uma declaração do escritor inglês E. M. Foster. Ele escreveu: “Nunca tive de escolher entre trair um amigo e trair meu país, mas se isso um dia acontecer, espero ter a coragem de trair meu país!”.
— Deus do céu — exclamei eu —, a declaração é linda e forte. E, literariamente, um luxo.
— Pois é o que eu acho da amizade. Mais importante que a pátria, mais importante que o amor.
E por aí foi a conversa no Café Severino. Depois de nos separarmos na santa paz, fui dirigindo o carro pelo Leblon, familiarizando-me com as obras do metrô. Liguei o rádio e entrou a linda voz de Adriana Calcanhotto cantando a última parte de uma de suas mais inspiradas canções:
“Cariocas nascem bambas
Cariocas nascem craques
Cariocas têm sotaque
Cariocas são alegres
Cariocas são atentos
Cariocas são tão sexy
Cariocas são tão claros
Cariocas não gostam de sinal fechado.”
Pensei: essa gauchinha é danada!
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Durante o jantar, comentei com a minha mulher:
— O Raul faz aniversário no sábado. O que você acha de a gente ir até lá dar um abraço nele?
— Acho ótimo. Assim fico conhecendo a mulher dele.

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