O fascínio da Odisséia se mede pelo fato de que eu consegui seduzir cinco adolescentes que, por três dias, me perseguiram, implorando que eu retomasse a leitura. ( E alguns dizem que os jovens não gostam de leitura…)
A viagem de Ulisses é uma saga atemporal. Ela é uma metáfora da vida. Todos somos navegantes em busca de uma felicidade perdida. Somos navegantes.
Assim se sentia Cecília Meireles, navegando por mares desconhecidos: “Muitas velas, muitos remos, âncora é outro falar. Tempo que navegaremos não se pode calcular. Vimos as Plêiades. Vemos agora a Estrela Polar. Muitas velas, muitos remos: curta vida, longo mar.” Assim se sentia Nietzsche, desafiando seus discípulos aos perigos do mar enfurecido: “Agora sereis navegadores, valentes e pacientes. O mar está em fúria; tudo está no mar. Assim é, velhos lobos do mar! Que foi feito da terra paterna? Nosso leme nos leva para a terra dos nossos filhos! Lá, nesse lugar, mais tempestuoso que o mar, a nossa nostalgia está em fúria.” Assim também se sentia Antônio Machado, ferido pela dor dos caminhos: ” Caminante, no hay camino, se hace camino al andar.” “Amargo caminar, porque el camino pesa en el corazón! El viento helado, y la noche que llega, y la amargura de la distância…”
Os poetas sentem e sabem. A psicanálise explica. Somos viajantes mesmo quando não viajamos. Viajamos sonhando, sem sair do lugar. O sonho é a viagem daquele que quer ir mas não pode. Não pode ou por não ter barcos ou por não saber para onde ir. Nos seus lugares mais profundos, o corpo é um navegante. Mora ali um fogo que não se apaga – Freud deu a ele o nome de “princípio do prazer”. Queremos navegar até o lugar (ou o tempo) onde encontraremos o prazer. Mas eu me sinto tentado, à semelhança de Octávio Paz, a falar em “dupla chama”. Castiçal de duas velas. De um lado, a chama do prazer, vermelha. Do outro, a chama da alegria, azul. Acho que Freud não concordaria comigo – mas não tem importância. Na minha psicanálise estou sempre atento ao “princípio da alegria”… Para isso viajamos: para chegar ao prazer e à alegria. Disse-o Fernando Pessoa no seu poema Eros e Psique: uma viagem louca para chegar ao lugar da beleza adormecida.
Toda viagem inclui duas partes. Primeiro, a escolha do lugar para onde se vai. Essa escolha, quem faz é o coração. Segundo, o preparo da viagem. Esse preparo quem faz é a razão. Por isso, disse Fernando Pessoa: “Navegar é preciso; viver não é preciso.” A navegação se faz com barcos, velas, bússolas, mapas, dinheiro, malas, roupas, passagens, hotéis, carros: tudo isso se equaciona racionalmente, de forma precisa. Mas a vida, a escolha do destino – que coisa mais imprecisa… Não há razão que nos diga o que escolher: grandes cidades iluminadas, aldeolas perdidas nas montanhas, desertos, pirâmides, fiordes, montanhas geladas, rios, florestas, parques de diversão, shoppings, lugares sagrados, monumentos, restaurantes, museus: as possibilidades parecem não ter fim…
Assim, fomos viajar. O coração escolheu: atravessar a cordilheira dos Andes, ao sul do Chile, entre lagos e florestas. A razão fez os preparativos: separou o dinheiro, comprou as passagens, tirou as malas dos armários, escolheu as roupas. Acho que nunca tive experiência de beleza maior: os lagos se sucediam, verdes, azuis, entre altíssimos vulcões cobertos de neve. Dos barcos para as “jardineiras”, montanha acima, estradas estreitas, serpenteando, árvores altíssimas, lembrei-me do relato de Neruda no seu livro Confesso que vivi – ele fez caminho parecido em lombo de cavalo, vagarosamente, o poeta fugindo dos fuzis (triste destino dos poetas!). Até que, ao final da travessia ( “travessia”, essa palavra que Guimarães Rosa tanto amava!) chegamos em Bariloche, outra exuberância de cores, lagos, florestas, montanhas, cheiros de pinheiro, o vento frio no rosto, os cenários que se perdiam no horizonte. Era prazer? Era. Mas era mais que prazer. Era alegria. A diferença? O prazer só existe no momento. A alegria é aquilo que existe só pela lembrança. O prazer é único, não se repete. Aquele que foi, já foi. Outro será outro. Mas a alegria se repete sempre. Basta lembrar.
Andando pelas ruas de Bariloche fiquei conhecendo um casal de brasileiros. Estavam lá com os seus filhos. Só fui reencontrá-los mais tarde, em Buenos Aires, numa daquelas ruas onde os turistas vão fazer compras. Sorrimos e nos cumprimentamos. E ele se apressou a falar: ” Finalmente estamos longe dos Andes e de Bariloche. Montanhas, vulcôes, lagos, matas! Nada para fazer! Só ver! Nós estávamos ficando doidos! Felizmente estamos aqui. Aqui há video-games. Nossos filhos estão felizes…” Ele falava como se fosse óbvio, como se eu estivesse sentindo o mesmo que ele, como se nós fôssemos iguais. Senti as palavras dele como uma agressão. Ele dizia que o que eu achava maravilhoso era horrível e o que eu achava horrível era maravilhoso. Primeiro, foi o choque, estupefação pura. Depois, indignação. Finalmente, ira. “O senhor escolheu a viagem errada”, eu lhe disse secamente. “Deveria ter ido para Las Vegas!” E nos separamos.
(Uma mulher me enviou um e-mail pedindo que eu desenvolvesse uma filosofia de tolerância: conviver numa boa com todas as opções culturais, estéticas, éticas. Não posso. Quem gostar de música sertaneja e os seus miasmas, que goste. Tem direito. Mas não há mágica que me faça dizer que música sertaneja é equivalente a Beethoven. Quem quiser gostar dos livros do doutor Lair Ribeiro, que goste. Mas não há nada que me faça sequer comparar o que ele escreve com Bachelard. Chamem-me de aristocrata, se quiserem. Não ligo. Há um ponto em que a tolerância significa indiferença. Não tenho tolerância alguma para com uma pessoa que prefere video-games aos rios, montanhas e florestas. Questão visceral. Considero-a minha inimiga. Não quero conversar com ela. Quem tolera tudo é porque não se importa com nada).
Eles prepararam a primeira parte da viagem direitinho: consultaram folhetos de turismo, trocaram os dólares, puseram as roupas nas malas, as passagens no bolso, câmera fotográfica à tiracolo. Mas os olhos que eles usavam, embora fossem perfeitos (nenhum deles usava óculos), não sabiam brincar com a natureza. Não haviam sido educados para isso. Tinham olhos de visão perfeita e eram cegos. Analfabetos no olhar.
Bem disse Alberto Caeiro que “Não basta abrir a janela/ para ver os campos e o rio. / Não é bastante não ser cego / Para ver as árvores e as flores…” De que me vale preparar a viagem com precisão se, ao chegar lá, eu só vejo o banal?
Por isso que Nietzsche dizia que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. Quem sabe ver está sempre viajando – mesmo que não saia de sua casa. Mas quem não sabe ver não viaja mesmo que vá para a China.
Suspeito que nossas escolas ensinem com muita precisão a ciência de comprar as passagens e arrumar as malas. Mas tenho sérias dúvidas de que elas ensinem os alunos a ver com outros olhos.
Há um ponto em que a tolerância significa indiferença.
Quem não sabe ver não viaja mesmo que vá para a China.
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