Como ignorar o que está a acontecer no Brasil?
(Embora, realmente, a pergunta que se impõe seja:
o que é que está a acontecer no Brasil?)
Tal como as autoridades brasileiras, fui apanhada de surpresa pelos protestos em São Paulo - e depois no Rio de Janeiro, Brasília, Fortaleza, Belo Horizonte, e por aí fora. Eu tenho desculpa: com dez dias de férias para gastar, pareceu-me boa ideia desligar do bulício da vida profissional e escapar às solicitações da cidade, e buscar refúgio no interior transmontano português, ver a sombra das nuvens nos montes, ler os meus livros ao som das andorinhas e do rego da aldeia, talvez pegar sinal no celular e talvez não... As autoridades brasileiras não têm desculpa nenhuma: desde o princípio, quase tudo o que disseram e fizeram merece crítica e censura.
Desprevenida, isolada, fui apanhando no noticiário nacional a descrição dos movimentos nas ruas, as manifestações, a repressão, os gritos, e cartazes, as declarações de dirigentes políticos e cartolas esportivos; fui procurando nas redes sociais as impressões, as anedotas, as denúncias, os manifestos, as opiniões, de quem está a viver in loco um momento que sem dúvida ficará registado como histórico na vida brasileira.
De longe, de fora, é difícil ter um retrato completo; é arriscado com informação tão limitada e desconecta consolidar uma posição, emitir uma opinião. Mas certas coisas parecem ser tão óbvias, tão do senso-comum, que é irresistível não as apontar: por exemplo, que o desenvolvimento da sociedade apela inevitavelmente a maior participação e mais democracia; que o exercício da cidadania, em defesa de uma causa justa, pode ser mais poderoso que a mera repetição do voto; que a crise da representação política é um perigoso salto no abismo; que quem se sente desapossado - do espaço público, do debate público, do orçamento público, do serviço público - acabará por fazer ouvir a sua voz e reclamar as suas queixas; que multidões desagregadas, descontroladas, facilmente podem ficar à mercê de interesses difusos...
Poderia continuar, mas não vem ao caso - estas são apenas generalidades; gente bastante mais habilitada do que eu poderá elaborar pensamento concreto que contextualize o fenómeno em curso no Brasil. Dos ecos que fui lendo, ouvindo, vendo, lá bem atrás dos montes, posso falar de uma sucessão de emoções em poucos dias: a surpresa inicial que deu lugar à incredulidade, a curiosidade, a admiração e o orgulho alheio que evoluíram para a dúvida, a desconfiança e a incompreensão. Resumindo, uma confusão.
Nesta altura, mesmo que as faixas digam que "um professor vale mais do que o Neymar" e que o pessoal faça as contas para comparar quantas escolas, quantos hospitais, quantos programas públicos poderiam ser financiados com o dinheiro aplicado nas grandes obras esportivas, quase já nem faz sentido associar o que se passa com o futebol - o da taça das Confederações ou o da Copa de 2014. Só o pessoal da Fifa parece não perceber nada do que está a acontecer: as declarações dos jogadores canarinhos só podem ser aplaudidas.
De resto, basta ver o arrepiante clip dos 60 mil na bancada da Arena Castelão a cantar o hino nacional (e já agora também o fenomenal drible de Neymar para o segundo golo do Brasil) para perceber que "uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa". Se alguma coisa foi clara e cristalina esta semana foi que os brasileiros nunca deixarão de torcer pela sua selecção e que nunca deixarão de amar e sofrer pelo seu país. Querem ganhar a Copa mas, principalmente, querem um país melhor.
Rita Siza é jornalista do diário português "Público", onde acompanha temas de política internacional, com ênfase na América Latina.
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