Minha avó e meus primos paternos moravam na Tijuca. Como meus pais trabalhavam no teatro nos fins de semana, eu e meu irmão costumávamos migrar do Jardim Botânico, onde cresci, para a Rua Padre Elias Gorayeb, nos dias de folga da escola.
E foi num sábado, 20 de novembro de 1971, que a notícia do desabamento do Elevado Paulo de Frontin transformou o percurso familiar em um pesadelo infantil. Estávamos nos preparando para sair quando a imagem insólita da laje de concreto colapsada sobre vinte carros, um ônibus e um caminhão, todos esmigalhados como uma folha de papel, emudeceu a família diante da televisão. Por questão de hora, não acontecera conosco. Desde então, a angústia de cruzar a Avenida Paulo de Frontin sob a sombra do minhocão me acompanha.
Voltei à rotina de gravações no Projac. O trânsito anda calmo, mas as novas medidas de segurança do Elevado do Joá provam que o belo traçado de asfalto está com as pernas bambas. O carro reduz para os 60 km/hora permitidos, enquanto a imaginação vaga em meio a elucubrações catastróficas. Fantasio um desmoronamento de filme pelo retrovisor, por vezes, considero a possibilidade de o chão se abrir de supetão e desenho a curva do carro no ar, a queda no mar e as notícias no dia seguinte.
Eu adoro o Elevado do Joá, as curvas sinuosas que acompanham a encosta, a altura abissal e o verde das ondas a bater nas rochas. É uma visão e tanto. Mas, desde que a precariedade e a má conservação do viaduto se tornaram evidentes, meus olhos abandonaram a paisagem para se concentrar nos vergalhões enferrujados, no concreto carcomido e na finura dos alicerces. Raramente vejo operários empenhados na recuperação da via. As colunas estão embrulhadas para a obra, mas a mão de obra é bissexta.
Estou inclinada a tomar o desvio tortuoso, porém seguro, do Morro da Joatinga. Mas a necessidade luta contra a vontade. O elevado cumpre uma função estética seriíssima no meu caminho para o trabalho, é o meu respiro, minha imensidão. A vista é o grande deus do carioca. Por isso esqueço de entrar à direita e arrisco a vida pelo exuberante horizonte.
Uma velha represa, acho que na China, ameaçava romper-se. Em caso de tragédia, as localidades vizinhas ao anunciado desastre sumiriam do mapa com a primeira enxurrada. Ao serem sondados sobre a preocupação de viver nas cercanias de uma barragem condenada, os habitantes próximos ao colosso confessaram não pensar no assunto. O medo aumentava na razão inversa do risco de óbito. As localidades afastadas, que teriam tempo para fugir das águas, demonstravam grande ansiedade com o problema.
A rotina banaliza o risco. Tento, como os chineses em perigo, relevar, esquecer, mas tremo toda vez que olho a viga.
Estive na abertura do elegantíssimo MAR, Museu de Arte do Rio. O evento contou com um pool de panelaços na porta. Quando cheguei, achei que a causa da revolta fossem os royalties do petróleo — a presidente estava presente na cerimônia —, mas uma repórter informou que os manifestantes escolheram o dia da inauguração da obra de dezenas de milhões de reais com o objetivo de chamar atenção para o estado de conservação dos teatros do Rio de Janeiro, muitos fechados por falta de equipamentos de segurança. Depois, soube que havia diversos grupos protestando por diferentes motivos de que não me recordo agora. O fato é que o encontro dos trios formou um baticum ruidoso que acompanhou os convidados noite adentro.
Não ligo o MAR ao abandono dos teatros públicos e tenho dúvidas se estaríamos melhor sem ele. Minha impressão é que não teríamos nem uma coisa nem outra. A parceria que viabilizou o MAR, pelo que percebo, se organizou de maneira a que o museu, uma vez erguido, possa caminhar com as próprias pernas.
Mas o buzinaço da classe teatral atenta para uma questão relevante. Não basta construir, é preciso manter; projetos futuros e passados. O MAR e o Teatro Carlos Gomes, a Perimetral e o Joá. O cobertor é curto, mas existem casos emergenciais.
Sem a providência divina, há precedentes, o Elevado do Joá periga cair antes da Copa.
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