sábado, 22 de junho de 2013

IVAN MARTINS - Nós e a multidão

Os casais costumam dividir o mundo em nós e eles. Basta uma semana de namoro para que esse forma perversa de cumplicidade comece a se manifestar. Nós somos inteligentes, bem informados, de bom gosto. Eles, ah meus deus, eles são um horror, mesmo quando são nossos amigos queridos.

Por razões que têm a ver com a política e a economia, a divisão do mundo entre nós e eles tornou-se muito mais profunda que a mera organização psicológica dos casais. Ela dominou a vida social. A maior parte de nós vive nos dias de hoje confinado ao universo do nós - eu e meus amigos, eu e minha garota, eu e minha família - e tem com o resto do mundo uma relação de ignorância ou hostilidade. São eles.

Aquilo que antigamente se chamava de vida privada tornou-se a única forma de existência. Vamos ao futebol ou aa balada, votamos a cada dois anos, mas vivemos a maior parte do tempo no interior da nossa bolha, onde experimentamos solitariamente as glórias e misérias do cotidiano. A vida pública, momento em que faríamos parte de algo maior do que nós mesmos, não existe. Ou quase.

Nesta semana, com as manifestações que tomaram as ruas das cidades brasileiras, houve uma espécie de renascimento. O coletivo e o geral atropelaram o particular. Milhares de pessoas deixaram seus problemas pessoais na gaveta e foram marchar por questões públicas, como cidadãos. Com esse pequeno gesto grandioso, revelaram ao país uma forma nobre e esquecida de felicidade, a de participar.

Quando nós viramos eles e eles viraram nós, foi possível perceber que não somos, afinal, tão diferentes. Com essa descoberta, o círculo de nossas relações se ampliou para incluir um número maior e mais heterogêneo de pessoas. Nosso universo se expandiu, nossa percepção enriqueceu, nos tornamos seres humanos mais interessaentes, e melhores. Além de mais poderosos. Ainda que momentaneamente.

Nos últimos anos - sejamos sinceros - andávamos obcecados por nossos problemas pessoais. Os amores. O trabalho. A familia. Foi como se o resto não nos dissesse respeito. Ou estivesse fora do nosso alcance. Chegamos a duvidar que aquilo que acontece "lá fora", no mundo da política, fosse capaz de penetrar nossa redoma privada e nos afetar. Mas penetrou e afetou, não? A violência, a pobreza, a injustiça, a corrupção... Aquilo que impede a felicidade de todos de alguma forma atrapalha a felicidade de cada um de nós. Isso aprendemos.

Talvez possamos, então, recomeçar, agora de um jeito mais equilibrado.

Somos indivíduos, com nossos sentimentos e nossos problemas, mas também somos parte da multidão. Algumas respostas que buscamos sozinhos talvez possam ser encontradas na companhia de outros. A fraternidade baseada em valores, e não apenas em cerveja, pode aquecer os nossos corações. Talvez ela seja um contraponto a certa afetividade triste que se multiplica por aí, na forma de amores sem esperança. O que não falta na rua é esperança: muita angústia se perde na confusão das passeatas e nunca mais é encontrada; muita dor de cotovelo desaparece. O mundo coletivo oferece novas emoções. Por que não abraçá-las?

Da minha parte, tenho me lembrado, diariamente, de um verso de Carlos Drummond de Andrade em Canção Amiga: "Minha vida, nossas vidas, formam um só diamante". É isso. Como podemos nos dividir em nós e eles se fazemos parte de um todo eterno e cintilante?


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