Uma das sensações mais estranhas para um filho de atriz é ver a sua mãe possuída por alguém que não é exatamente ela, embora seja. Quando pequena, eu evitava assistir à novela Sangue do Meu Sangue porque o personagem da minha progenitora apanhava demais do marido. Também sentia vergonha na plateia de Seria Cômico Se Não Fosse Sério, quando Zanoni Ferrite cortejava a desvairada Alice. Mais velha, substituí por uma noite a menina que fazia a filha de Petra Von Kant. Nunca mais esqueci o rosto transtornado e a fúria de minha mãe deitada no chão, bêbada, como que em transe. Desde então, trabalhamos juntas diversas vezes, a ponto de eu achar que havia me curado do mal-estar da juventude. Coube ao filme Central do Brasil ressuscitar os medos atávicos. Nele, Dora, a ex-professora que escreve cartas para analfabetos na estação de trem, aceita levar um menino órfão de volta para o pai, no Nordeste. Assim que embarca no ônibus, Dora saca uma garrafa de pinga da bolsa e entorna pelo gargalo. Diante da cena, senti, novamente, o velho embaraço de ver dona Fernanda louca, descomposta e mãe de coisa nenhuma. Suspeito que a ideia da bebedeira tenha saído da cabeça de João Emanuel Carneiro, corroteirista do filme. A crueldade do núcleo principal de Avenida Brasil cultiva a mesma dureza. A sensação de que o mundo adulto é tão ou até mais desamparado do que o infantil. Na semana passada, corri para tirar a maquiagem depois de um dia longo no estúdio. No camarim, a TV estava ligada na novela das 9. Parei. Carminha largava o filho no lixão. O único alento para o ato funesto era o olhar amoroso de Vera Holtz; o resto, silêncio. Fui tomada pela mesma insegurança que me abateu no Central. A Adriana deve gravar tanto, decorar tanto, que não há mais resistência para a ardilosa Carminha. Não se vê mais a atriz, só sobrou a personagem. É um vício comum no intérprete a exibição das lágrimas como se fossem troféus. As de Adriana, não; bem antes de cair, já enchiam os olhos de mágoa, mirando o filho desaparecer pelo retrovisor. Medalha de honra para o diretor Gustavo Fernandez. Voltei deprimidíssima para casa. No dia anterior, eu tivera a sorte de ouvir os dez cornos repetidos em série por Marcello Novaes. Uma surra de impropérios digna do pior cafajeste de Nelson Rodrigues, tão canalha que chegava a dignificar a cornidão heroica de Tufão. Na sua novela anterior, A Favorita, João propôs começar a trama sem estabelecer com clareza quem seria a heroína e quem seria a vilã. Em Avenida Brasil, fez diferente, definiu de saída, sem espaço para dúvidas, para depois subverter os papéis. É um dramaturgo e tanto. Se é que existe algo que ainda não foi dito sobre Avenida Brasil, cito aqui a cinematografia com que são feitas, principalmente, as externas. Há uma utilização muito precisa das lentes, do desfoque do primeiro plano e da profundidade de campo. Durante muitos anos, o cinema e o vídeo trilharam caminhos separados, quase opostos. O primeiro era feito em película e o outro em tape. Não havia conversa. A revolução tecnológica do início do milênio aposentou o celuloide e ampliou as nuances da captação digital. Hoje, cinema e TV falam a mesma língua. Cabe aos envolvidos explorar os recursos advindos dessa fusão. Ricardo Waddington é meu cunhado. Graças a essa proximidade, pude acompanhar as dezenas de visitas feitas por ele a feiras de equipamentos, bem como a contratação de técnicos que redefiniram as rotinas de som e luz de seu núcleo na TV Globo. Esse apuro tecnológico, hoje, dimensiona o realismo cortante de Avenida Brasil. Cordel Encantado, também dirigida por Amora Mautner, foi um divisor de águas, mas a atual trama das 9 leva o padrão ainda além. É uma televisão que aponta para o futuro e quebra uma barreira de linguagem importante, dando um peso cinematográfico ao carro-chefe da programação. Que venham outras em seu lugar.
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