Nem acredito que essas crianças enfurecidas, pequenos selvagens que apanhados destruíram, literalmente, postos de polícia e salas de atendimento de menores infratores, chutando policiais, atirando objetos longe, quebrando e rasgando o que chegava ao alcance de sua violência, tenham possibilidade de melhoria, se devolvidas a sua pseudofamília. Retomadas às ruas, são um perigo para si e para todos. A lei deveria ser muito firme nesses casos, para socorrer esses fantasmas com carinha de criança e alma de sombra, acalmando sua violência, incutindo-lhes o que seja convívio, dignidade, respeito por si e pelo outro: longo caminho, longo aprendizado, longo esforço da sociedade em compensar essas pessoinhas pelo abandono em que as deixou.
Quando se fala em redimir os miseráveis do país retirando-os desse contexto, deve-se incluir, de imediato, o trio moradia, saúde e educação, sem o qual somos quase bichos. Perdoem-me os ainda líricos, mas o que se viu mais de uma vez nessas crianças foi violência nua e crua. Talvez estivessem drogadas. Certamente não conhecem outra coisa no ambiente insano no qual nasceram. Mas precisam, por isso mesmo, de contenção, limite, autoridade amorosa mas firme, orientação e, antes de tudo, cuidados básicos consigo mesmas.
Onde a família virou apenas um mito distante, mais essencial é a ideia da educação, que não se restringe a caderno e lápis, mas começa com a tentativa de salvar essas crianças do seu meio com um atendimento básico em saúde e higiene, conceitos bem fundamentais de vida, afeto, respeito, o que, naturalmente, inclui limites, disciplina, restrições e encaminhamento paulatino, paciente mas com autoridade, a uma condição de vida mais humana. Educação começa aí, inclui essas coisas, é muitíssimo maior do que isso que chamamos ensino, e é condição dele.
Erradicar a miséria onde ainda se vive em condições inimagináveis é ainda mais urgente do que ordenar o sótão da casa, procurando expulsar os ratos e os insetos daninhos ali instalados, reestruturar funcionamentos, dar novo sentido, deixar entrar claridade, botar em ação espanadores, panos, água limpa, enceradeiras e ordenação dos objetos. Mas talvez as duas coisas sejam essenciais e não sejam incompatíveis, embora exijam força e empenho quase sobre-humanos: o país olha com alguma esperança para essa possibilidade. Quem assistiu ao espetáculo daquelas crianças ferozes aposta em se juntarem as duas pontas numa grande arrumação de casa visando aos espectros do porão e aos ratos e lacraias do sótão, custe o que custar, entretanto oposições, reclamações,. superando jogos de poder e cobiça de cargos, encarando o principal: limpeza, luz, ordem, eficiência, decência, fazendo funcionar melhor a dramática engrenagem social em que nos debatemos.
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