terça-feira, 30 de julho de 2013

LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - Musas


MUSAS

Desde que Homero pediu à Musa que iniciasse o relato da Odisséia por onde elaquisesse os escritores esperam das deusas da arte não apenas inspiração como instruçõesespecíficas: como e por onde começar, que estilo usar, o tom, o tamanho, tudo. Mesmoquem procura o assunto e como tratá-lo em sofridos mergulhos dentro do próprio cérebro oudedica-se a infindáveis rituais de preparação antes de escrever a primeira linha, confiandono poder da encantação para constranger o talento preguiçoso a aparecer, está, na verdade,atrás da musa. Não uma musa metafórica, apenas outros nomes para o mistério da criação.Uma musa mesmo. Uma mulher, com ou sem toga, que sente ao seu lado e lhe diga: escrevasobre isto, escreva deste jeito, comece assim ― e ainda lhe dê a primeira frase...― Escreva aí: desde que Homero pediu à Musa que iniciasse o relato da Odisséia por...― Mas... Quem é você?― Sua musa.― Finalmente!― Não se entusiasme demais. Você ainda terá que fazer o trabalho pesado. Nós nãoescrevemos nada. Ainda mais em computador.― Mas você é tudo que eu estava esperando. Alguém que me dê idéias sem eu precisar espremer o cérebro, ou ficar esperando a inspiração jogando paciência, que leva atudo menos à inspiração. Você está aqui. Ao meu lado. A inspiração em carne e osso! Vemcá!― Epa. Olha o assédio sexual no local de trabalho. Musa não é secretária!― Desculpe. Eu só queria abraçá-la, eu... Que musa é você?Calíope? Clio? Thalia?― Tá brincando? Essas são do primeiro time. Quem você acha que é, Homero? Eusou a musa da crônica em jornal.― Como é seu nome?
Julinha.― Por que será que as musas são mulheres, Julinha? Por que a arte, para os gregos,no fundo era coisa de mulher?― E eu sei? Escreve aí: "Desde que Homero..."― Ou vocês são, na verdade, uma projeção das nossas mães? Como as nossas mãesnos alimentavam com seu leite, vocês alimentam o nosso cérebro com idéias. Como asnossas mães guiavam os nossos primeiros passos, vocês guiam a nossa mão no papel, ou noteclado. Todo artista é, no fundo, um exilado da mãe querendo voltar para o seu domínio.Será isso?― Nós estamos aqui para trabalhar ou...?― As escritoras mulheres, têm musos?― Escuta. Me mandaram aqui para ajudar você. Eu já lhe dei a idéia. Escrever sobre as musas. Sua importância na antiguidade, sua história no Olimpo, onde cantavamacompanhadas pela lira de Apolo, sua rivalidade com as Sereias, etc. Só aí você já temassunto para vários domingos. Mas essa especulação pseudopsicológica sobre o significadooculto das musas, nesta forma de diálogo, não foi idéia minha. Ou você pára ou...― Ou os gregos apenas representaram, nas Musas, o fascínio de todas as mulheressobre todos os homens, já que tudo que o homem faz é para impressionar ou escapar damulher? Tudo ― guerras, cidades, máquinas, civilizações e, claro, arte ― ou é paquera ou éterror, ou é conquista ou é fuga. A mulher domina a mente do homem, o cérebro de todohomem é um templo em que as mulheres são estátuas e sombras, mães e prostitutas, servas einvasoras. As musas são as sacerdotisas desse templo, instaladas pelos deuses para pôr ordem no caos, ou canalizar o caos para a arte.― Eu vou embora.― Espere! Tive outra idéia que não é sua. Por que as musas são mulheres, se hámais artistas homens que mulheres? Se homens fazem arte seria natural que homensinspirassem a arte. Mas o homem, ao criar a arte, está imitando a mulher que cria a vida. Aíestá a lógica dos deuses ao criarem as Musas. Eles estavam expressando a sua inveja doútero! Tudo se encaixa, tudo é simétrico e clássico, tudo se explica. Pois, se as mulherescriam a vida impregnadas pelo homem, é natural que os homens criem a arte impregnados pelas mulheres. As Musas não são inspiradoras, são reprodutoras. São garanhões etéreosespalhando sua semente penitente em nossos cérebros, para nos igualarem a elas na criaçãode vida.― Tchau.― Você já vai?!― Foram os garanhões etéreos.― Não vá ainda. Eu preciso de um fim para o meu raciocínio. Talvez as musasestejam, no fundo, zombando de nós. Talvez o ato de impregnação seja não uma penitência para nos dar o mesmo poder que têm as mulheres, mas uma reafirmação da suasuperioridade. Pois por mais que nos inspirem, nos semeiem com idéias e nos fertilizemcom frases, jamais daremos à luz vidas de verdade. Serão sempre ficções, vidas falsas,mundos postiços, épicos hipotéticos com heróis de mentira, ou crônicas indecisas commusas inventadas. O que você acha? Ei, onde está você? Eu preciso de um final. Você medeu um começo, agora me dê um fim. Musa! Julinha! Um final. Eu preciso de um final! 
Volta!

Nenhum comentário:

Postar um comentário