AFLIÇÕES DA PASSAGEM DE ANO
- A passagem de ano é um balanço da vida
- Há uma mistura de esperança e apreensão
- O relacionamento com o mundo é posto em questão
Muitas pessoas suspiram aliviadas quando terminam as chamadas festas de fim de ano. Realmente, o fato de o Natal cair uma semana antes do dia 31 de Dezembro constitui uma OVERDOSE de emoções. Só mesmo nervos de aço e corações de pedra podem passar ilesos por dias tão densos, tão intensos e tão carregados de significação. É emoção demais para ser digerida em pouco tempo. E tome ressaca, empanturramento e indigestão. Com isso não estou me referindo aos excessos físicos. Refiro-me aos excessos psíquicos de que ninguém consegue escapar.
A mente humana é engraçada. É capaz de digerir quase tudo, mas requer uma condição: que lhe seja dado TEMPO para a digestão. É como aquele caipira a quem se perguntou se seria capaz de comer um boi. Sem pressa alguma, respondeu: "É claro que sou. É só me dar um ano. De churrasco em churrasco em chego lá."
Como a cada fim de ano somos quase obrigados a comer um "boi" em apenas uma semana, ficamos expostos às ressacas, às indigestões e aos empanturramentos psíquicos. Os sintomas decorrentes são vários: vulnerabilidade emocional, turbulências interiores, ansiedades, agonias e tristezas, tudo envolto em um clima de apreensão e irritabilidade. Nasce uma preguiça enorme, que vem a ser sinal de exaustão e desejo de recolhimento e repouso.
Não bastassem esses sintomas gerais, que ocorrem sempre que estamos vivendo sobrecargas, ainda existem os sintomas específicos, que correm por conta do significado de cada uma dessas festas.
O Natal é tempo de balanço da qualidade dos vínculos que estabelecemos com aqueles que nos são mais próximos. É tempo de avaliação do amor que damos e recebemos. Não do amor público, social, abstrato, universal, quase impessoal, mas do amor mais íntimo, concreto e personalizado que existe. Nesse sentido, o Natal é o oposto do Carnaval. As emoções carnavalescas não dizem respeito aos nossos amores permanentes e cotidianos. Dizem respeito aos encontros e desencontros dos pierrôs, arlequins e colombinas que cada um traz dentro de si. O Carnaval, portanto, conta nossas realizações e frustrações em relação aos sonhos secretos de amor que todos sonhamos - os encontros e desencontros enamorados, os namoros bem e malsucedidos. O Carnaval é, assim, tempo de balanço de nossa capacidade de despertar magia e sedução.
Já a Passagem de Ano é uma festa híbrida. Contém todos os elementos do Natal e do Carnaval. Não é a toa que tanta gente cumpre sempre um mesmo ritual. Até a meia-noite a pessoa fica com a família, para, em seguida, afogar as mágoas sambando pelas ruas e pelos salões, em cadência de folia.
No entanto, a Passagem de Ano é mais complexa ainda. Não só contém emoções natalinas e carnavalescas, como também contém emoções mais amplas ainda. Na realidade, trata-se de um tempo de balanço. Mas não só de balanço familiar e dos amores enamorados. Trata-se de um balanço geral, que engloba TODOS os aspectos de nossa vida. Tudo o que fomos e deixamos de ser. Tudo o que realizamos e não conseguimos realizar, desde o passado mais longínquo até o presente mais imediato. A tudo isso somam-se as esperanças e apreensões de um novo ano que se inaugura. Ocorre-nos então uma pergunta decisiva: nosso futuro será mais auspicioso que nosso passado? Pergunta que põe em questão toda nossa vida.
Sem dúvida, são muito intensaas as reflexões propiciadas por essa época do ano. Não é a toa que tanta gente vive com apreensão um momento tão denso de emoções, concentradas em um curto período de tempo.
Por fim, a Passagem de Ano é a época da confraternização universal. Devido a esse aspecto, evoca a qualidade de nosso relacionamento com o mundo. Trata-se de uma festa em que somos avaliados. E essa avaliação se dá tanto no plano privado quanto no plano público. Por isso, é possível dizer, sem cair no exagero, que dificilmente há comemoração comunitária mais complexa que a festa de Passagem de Ano. Complexidade que se traduz na soma de emoções, muitas vezes conflitantes, que acometem praticamente todas as pessoas.
Por Eduardo Marcarenhas, psicanalista.
Lembrança, quanta lembrança
ResponderExcluirdos tempos que lá se vão
Minha vida de criança,
minhas bolhas de sabão
Tudo muda, tudo passa . . .
Guilherme de Almeida