A melhor do papa até agora foi “a Igreja não vai ser babá de ninguém”. É uma frase que indica uma aposta no mundo moderno, onde o liberalismo se tornou senso comum. Ainda que possa parecer uma entrada tardia na modernidade, é um passo significativo. Afinal, nunca se sabe ao certo quando é que é bom aderir ao novo, se quando ele é muito novo ou se quando ele parece tão velho que até já derrotou inimigos que diziam vir do futuro.
O liberalismo é uma doutrina nascida em torno do século XVII (John Locke à frente) que, entre outras coisas, faz a defesa da liberdade individual. Com ele surge o indivíduo moderno, umbilicalmente ligado à noção de autonomia. É nesse sentido, de dizer para todos que a Igreja Católica não vai (mais) infantilizar ninguém, que o papa Francisco está abdicando de qualquer função que lembre a puericultura ou a ordenação de rebanho de ovelhinhas. Mas, é claro, ele não pode ser um liberal. A Igreja tem pretensões de atemporalidade, tanto quanto seu dono, Deus, e não deve se filiar a qualquer ideário que se mostre muito datado. Então, em que sentido exato o Papa está retirando a canga do pescoço do católico?
O Papa Francisco é argentino e jesuíta. Ou seja, ele vem de um povo orgulhoso e de um grupo que nasceu moderno.
O orgulho argentino é bom. A humildade que o cristianismo pede às vezes se torna uma ideologia barata. Na boca de um professor orgulhoso, o cristianismo pode recobrar seu sentido mais cristão. Jesus nunca foi de abaixar a cabeça. Caso fosse, não seria crucificado, obviamente. A humildade de Jesus nunca foi piegas, sempre esteve ligada à ideia de poder aprender, de reescrever lições quando estas são expressões altas, aquelas que podemos chamar de “divinas”.
O papa Francisco parece claramente esse tipo de pessoa, com um olhar vivaz e sem aquela postura de corpo resguardado, encurvado – verdadeira ou falsamente – como as de João Paulo 2º e Bento 16. Nunca gostei do olhar vindo de baixo, próprio daqueles dois. Quem pintaria Jesus olhando por debaixo, sorrateiro, quase que escondendo expressões? Ninguém fez isso. É o demônio que olha assim.
O vínculo com o jesuitismo também ajuda. Diz o filósofo alemão Peter Sloterdijk que os primeiros sujeitos modernos, em termos filosóficos, foram os jesuítas. Os jesuítas, segundo ele, foram os que fizeram coisas que se mostram como características do sujeito: pensar pela própria razão. Mas pensar assim para passar da teoria à prática. Ora, pensar pela própria razão não é sinônimo de pensar contra tudo e todos, não é rebeldia ininterrupta. Trata-se, antes, de poder ser o conselheiro de si mesmo e, portanto, desinibir-se o suficiente para conseguir realizar empreendimentos próprios.
Um dos empreendimentos próprios dos jesuítas: a Companhia de Jesus. O nome diz tudo: Companhia. Havia a Companhia das Índias, era uma empresa. Os jesuítas criaram exatamente isso, uma empresa. Uma empresa militar, de ensino e nos moldes organizacionais do capitalismo nascente, com o objetivo de enfrentar aqueles que pareciam ser os verdadeiros modernos, os reformadores.
Os jesuítas fizeram algo mais moderno que os reformadores: eles se puseram deliberada e conscientemente como instrumentos da Contra Reforma, levada a cabo por uma empresa. Eles pegaram dos adversários, os protestantes, a ideia do indivíduo autônomo, mas resolveram manter aquilo que os protestantes tolamente perderam: a infalibilidade do papa. Assim, toda vez que o indivíduo pudesse parecer como fraco, a empresa tinha como retaguarda uma força exterior a mais que ela própria. Quando nos lembramos disso tudo, vemos o quanto a Contra Reforma foi talvez mais moderna que a Reforma, mais exigente em relação a criar homens modernos, ao menos no seu interior.
Ora, se é assim que Francisco se vê, então, levando em consideração os nossos tempos, pode muito bem ser que ele esteja projetando para todos o que antes, na origem da Companhia de Jesus, era algo próprio dos seus membros. Francisco diz que o católico não será mais conduzido como criança. Ele próprio já andou dando declarações que, depois, tiveram de ser refeitas pela voz oficial e impessoal da Cúria. Ele é um homem da Igreja, mas altamente centrado na capacidade de ser uma pessoa com identidade e vontade próprias, sem precisar de qualquer Border Collie para conduzi-lo. Sendo assim e sendo orgulhoso, não é de todo errado cogitar que esteja transmitindo ao católico esse ideal de postura.
Caso as coisas continuem nessa toada, e nenhum raio abrupto quebre o ritmo das coisas, a Igreja Católica ainda vai dar o que falar, surpreendentemente, e em favor de seu reflorescimento, especialmente em uma época em que o ativista substitui o militante. Aguardem!
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