terça-feira, 12 de novembro de 2013

ARNALDO JABOR - Há bens que vêm para o mal

O bem está virando um luxo e o mal uma necessidade social

A frase que mais me impressionou na semana foi escrita pelo Comando Vermelho em sua “constituição”, em seu estatuto de regras: “O crime nos dá a convicção de que nossas bravuras são pelo progresso, por nosso esforço e mérito. Farão de nós vitoriosos. Pois, nós somos o lado certo da vida errada”. É extraordinário: “nós somos o bem do mal”.

Citei o CV e agora cito o professor Jean-Pierre Dupuy, filósofo da Escola Politécnica de Paris e da Universidade de Stanford que escreveu em seu livro “Por um catastrofismo esclarecido”: “Sempre o Mal esteve relacionado com as intenções de quem o comete. Os horrores do século XX deviam nos ter ensinado que isso é uma ilusão. O absurdo é que um mal imenso possa ser causado por uma completa ausência de malignidade, que uma responsabilidade monstruosa possa caminhar junto com uma total ausência de más intenções. (...) A catástrofe ecológica maior com que nos deparamos e que põe em perigo toda a humanidade será menos o resultado de um mal dos homens ou mesmo de sua estupidez. Terá sido mais por uma ausência de pensamento (“thougthlessness” ). (...) Hoje, um sem número de decisões de toda ordem, caracterizadas mais pela miopia do que pela malícia ou pelo egoísmo, compõem um todo que paira sobre elas, segundo um mecanismo de autoexteriorização ou de autotranscendência.

O mal não é nem moral nem natural. É um ‘mal’ do terceiro tipo, que chamarei de ‘mal sistêmico.’”

O mal é o bem ou o bem é o mal? Antigamente, era mole. O mal era o capitalismo e o bem o socialismo.

Agora, os intelectuais, os bondosos de carteirinha, os cafetões da miséria, os santos oportunistas, estão em pânico. Se não houver um mal claro, como seremos “bons”? No mundo inteiro há uma reviravolta ética, um cinismo que nos acostuma com o inaceitável. E também renasce, com descaro, a boçal divisão guerreira entre “esquerda” e “direita”. Ninguém aguenta conviver com singularidades. Há uma fome bruta por “universais”. Mas, como escreveu Baudrillard: “Hoje não há mais o universal; só temos o singular e o mundial”.
Quem é o mal: o assaltante faminto ou o assaltado rico? Ou nenhum dos dois? Como praticar o bem? Apenas se horrorizando com o mal? Como inventar uma “práxis” do bem?

O mal é sempre o outro. Nunca somos nós. Ninguém diz de fronte alta: “Eu sou o mal!” Ou: “Muito prazer, Diabo de Almeida”.

Como disse Hannah Arendt, na frase que virou lugar-comum: o mal ficou banal. Tanto que o mal dos terroristas e jihadistas consiste em injetar no Ocidente o seu “bem”, o arcaico no moderno, neste inferno “clean” que o capital inventou. Em nome de uma razão ideológica, de uma finalidade futura, os soviéticos assassinaram milhões pelo “bem” do Homem Total. A fé excessiva no sentido e na finalidade prejudicaram muito o pensamento, mais do que a gente imagina. Hoje em dia, a esperança é mais remota, mas talvez esse vazio seja o início de uma reflexão mais à altura de nossa mediocridade finita, de um “geist” mais vagabundo.

Quem é o planejador do mal? O Japão vai parar de produzir robôs, para empregar a mão de obra faminta da Somália? Quem controla o mal? A Al-qaeda, o Putin, o Assad? Ou eles são agentes de um “mal” histórico-concreto inevitável? E cito mais uma vez Baudrillard, tão criticado pelas academias porque tinha imaginação e brilho: “Hoje, contra o mal, só temos o fraco recurso dos direitos humanos”.

Talvez um caminho seja, como escreveu Louis Dumont, nos “Ensaios sobre o individualismo” (apud Dupuy): “O bem deve englobar o mal, mesmo sendo seu contrário”.

(Arghh, quanta citação!...)

O bem está virando um luxo e o mal uma necessidade social. Sem participar do mal, não conseguimos viver. Como ser feliz olhando as crianças empilhadas na Síria, no Iraque, nos grotões do Brasil feudal: Maranhão, Alagoas etc...? Temos de fechar os olhos. “Sou feliz, se conseguir manter os olhos fechados.” Ser feliz é não ver. Como praticar o bem? Apenas se horrorizando com o mal? Não vale ficar “tristinho”, nem lançar apelos à razão ou à caridade. “Eu fiz tudo para ser um homem de bem. Serei um canalha?” Todos se acusam, todos querem ser o bem. Durante a ditadura, todos éramos o bem. O mal eram os milicos. Acabou a dita e as “vítimas” (dela) pilharam o Estado. O que é o “bem” hoje? É lamentar com certo prazer uma impotência, é um negror melancólico, é um elogio da morte? Ou o bem é ser pragmático, frio? É uma identificação mecânica com as desgraças ou um desejo “protestante” de melhorar na vida?

O pensamento aspira à totalidade. O bem será um desejo de harmonia, de Uno, ou o bem é suportar heroicamente o múltiplo, o incontrolável, a impotência “democrática”? O bem hoje é aceitar os limites do “possível histórico” ou persistir em utopias, apenas pelo prazer de se sentir acima da insânia da vida? Pensamos com o corpo, queremos que o mundo seja um “todo harmônico”, como o nosso organismo. A ideia de “fragmentário” gera angústia, porque lembra a morte. Por isso, a aceitação do fragmentário se reergue em nova totalidade e começa tudo de novo. A democracia é muito complicada, lenta e está deixando todo o mundo impaciente — somos todos totalitários. Ao denunciar o mal, vivemos dele. Eu ganho a vida denunciando o que eu acho o “mal”.

O mal no mundo atual é o “incompreensível”. Também, nós sabemos desses perigos todos, mas não cremos neles. A catástrofe talvez já tenha acontecido, mas a gente não acredita. No Brasil, o grande mal não tem importância. O perigo aqui é o pequeno mal, enquistado nos estamentos, nos aparelhos sutis do Estado, nos seculares dogmas jurídicos, nos crimes que são lei. O mal aqui está nos pequenos psicopatas que, quietinhos, nos roem a vida. Aqui o grande canalha serve para camuflar os pequenos, que são os grandes canalhas. O mal do Brasil não está na infinita crueldade dos torturadores ou das elites sangrentas; está mais na sua cordialidade. No Brasil, o mal nos engana. Aqui, o perigo é o bem.

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