quinta-feira, 7 de novembro de 2013

COM QUANTA TRISTEZA SE FAZ UMA DEPRESSÃO?

A tristeza perdida,
 livro dos psiquiatras Allan Horwitz e Jerome Wakefield, 
critica diagnósticos que ignoram a relação 
entre os sintomas e o contexto do paciente

Há 2.500 anos o ser humano se preocupa em distinguir a tristeza normal da melancolia, nome antigo para o que hoje denominamos “transtorno depressivo”. Desde Hipócrates (460-377 a.C.), na antiga Grécia, observa-se que as reações que temos a perdas de entes queridos, amores e outras tantas coisas importantes podem gerar profundo pesar. 

No entanto, é possível detectar que, para alguns, a tristeza se prolonga demasiadamente, e sua causa não é identificada pelo próprio sofredor. Ausência de motivo para sofrer: este foi um importante critério diagnóstico para a melancolia em diferentes períodos da história da medicina.

De modo geral, para qualificar a tristeza ou a depressão utilizamos a observação de alguns fenômenos: desânimo, mágoa, abatimento, sensação de vazio, desespero, desesperança, aversão a comida, irritabilidade, inquietude, sentimento de inutilidade, ideação suicida, tentativa de suicídio, medo da morte, negativismo, falta de prazer ou de interesse nas atividades cotidianas, reclusão social, fadiga ou perda de energia, agitação ou retardamento (desaceleração) psicomotor.

O fato de a tristeza ser profunda e intensa, reunindo várias dessas manifestações por um tempo um pouco maior do que o esperado, em geral, proporcionou à psiquiatria contemporânea uma confusão entre tristeza “natural” e transtorno mental depressivo. 

Os autores de A tristeza perdida, Allan Horwitz e Jerome Wakefield, ambos psiquiatras, criticam o momento atual dessa especialidade médica por se apoiar em diagnósticos que ignoram a relação entre sintomas e o contexto do paciente. Como resultado, com exceção do luto, qualquer reação a uma grande perda tem altíssima chance de ser diagnosticada como depressão, pois o critério se baseia no sintoma e não na causa do sofrimento.

O livro tem o mérito de questionar a classificação atual do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM IV) para transtornos depressivos no momento em que ocorrem as discussões preparatórias para a elaboração do DSM V, previsto para 2013. Trata-se de uma revisão do conceito de depressão no interior da própria psiquiatria. “Uma crítica vinda de quem leva a sério o DSM e por isso é útil e bem recebida”, diz Robert Spitzer, psiquiatra que escreveu o prefácio do livro. Esse comentário é importante, pois uma das poucas críticas que se pode fazer ao livro é quanto ao embate que os autores travam com as ciências sociais, culpando-as por não encontrar mecanismos emocionais universais inerentes à natureza humana e não demonstrar quais circunstâncias estressantes provocam tristeza normal. 

Criticam a teoria relativista da antropologia que afirma não haver definições possíveis para tristeza e transtorno fora do valor específico de cada cultura. A rigidez dos autores é curiosa, por exigir das ciências sociais que tomem como ponto de partida o mesmo objeto, ou seja, o DSM IV. Essa atitude é de lamentar, pois impede a consideração de outras fontes como, por exemplo, estudos psicanalíticos que igualmente buscaram recuperar a tristeza para o cenário da condição humana, além de questionar a banalização da depressão sem se ater ao DSM IV. É o caso de Elisabeth Roudinesco (Por que psicanálise?, 2000) e Maria Rita Kehl (O tempo e o cão, 2009).

O livro cumpre bem seu objetivo: proporcionar uma perspectiva crítica sobre a conceituação da experiência da depressão, como ela foi explorada por variados grupos e como sua classificação mudou, de forma questionável, com o passar do tempo. Os autores querem demonstrar que a tristeza intensa é uma capacidade natural humana e não uma fraqueza de caráter e que a tristeza é produto de processos mentais relevantes funcionando conforme foram biologicamente projetados para reagir à perda. São problematizadas as vantagens e desvantagens de haver definições demasiado amplas de transtorno depressivo, bem como tratamentos injustificados, medicalização desnecessária e estigmatização.

Horwitz e Wakefield contam como no século XX os sintomas ocuparam a cena na elaboração de métodos estatísticos para fazer diagnósticos. Vários fatores colaboraram para a instalação dessa forma de avaliar a depressão. Por exemplo, razões epidemiológicas: a necessidade de revelar na comunidade os mesmos transtornos mentais que supostamente afetavam os pacientes tratados. Afinal, havia aqueles que não buscavam ajuda médica e só poderiam ser diagnosticados por questionários que chegassem até eles. 

Isso contribuiu para o surgimento de muitos casos falsos-positivos, já que os questionários eram aplicados por leigos. Outro fator foi o alto índice de suicídio entre jovens americanos. Em 2003, foi constatado que 4 mil crianças e adolescentes se suicidaram, de um total de meio milhão que tentou. Era urgente detectar transtornos depressivos e tratá-los. Mas os autores criticam esse procedimento: haveria que verificar o contexto em que se dá a tentativa de tirar a própria vida afinal, trata-se de uma idade de muitas transformações.

A patologização do sofrimento do adolescente lembra a patologização da masturbação infantil na era vitoriana, dizem os autores. Isso nos remete ao filósofo francês Michel Foucault, quando aborda o controle da vida pelo Estado. E ele certamente não levava a sério o DSM IV.

Por fim, os autores são realistas o suficiente para saber que não se mudam critérios diagnósticos com tanta facilidade nos dias de hoje. Há grandes grupos e interesses privados que estão se dando bem com a atual definição de transtorno depressivo. Esse me parece ser mais um motivo para unir esforços entre as várias disciplinas.
Patricia Porchat - Revista Mente Cérebro

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