O Brasil mudou muito dentro de nós. Não falo de uma descrição figurativa da história recente. Falo de bobagens, detritos, coloquialismos que nos mudaram. Falo de nossa vida interior de 1964 para cá. Houve uma mutação mental silenciosa sob os acontecimentos. O que mudou nas cabeças?
Antes de 64, o ritmo das coisas tinha a linearidade de um filme acadêmico. Para nós, jovens de esquerda, o país era ameaçado por uma vaga "direita" que não romperia o contrato imaginário de uma luta "cordial". Falávamos muito em "luta de classes", mas não conhecíamos ainda a violência da "reação". Acreditávamos em um Papai Noel histórico. Dizíamos: "Nosso Exército é democrático porque é de classe média e a burguesia nacional é progressista. Não trairão Jango".
Nada descreve o choque da aparição súbita de Castello Branco na capa da "Manchete". Nunca ouvíramos falar daquele homenzinho fardado, feio como um ET. De repente, tivemos a certeza de que tínhamos "subestimado o inimigo". Rompeu-se em 64 o sonho de que as ideias mudavam o mundo. Não tínhamos mais o "futuro harmônico" de um socialismo imaginário. Um general baixinho mandava em todos, acima das "sagradas massas". Grande trauma.
Aprendizado: o coloquial, a ignorância, o acaso eram mais fortes que nossos generosos desejos. Fizemos, claro, um diagnóstico "histórico": "64 foi um golpe dado pelo conservadorismo das elites diante das massas surgidas na industrialização, com o apoio do imperialismo". Tudo bem - mas foi muito mais um golpe dado pela classe média apavorada, com medo de sua ala "de esquerda". A esquerda - toda de classe média (não havia "operários" no Brasil antes de surgir a alegoria de Lula) - era o braço generoso e crítico dessa mesma classe média. Descobrimos que não havia "massas proletárias".
Achávamos que íamos lutar contra os ianques e fomos vencidos por nossas tias. A adesão a 64 foi impressionante. Nossos pais, primos, avós, todo mundo era "de direita". A esquerda janguista foi coberta de ridículo. Acabou ali a ideia de que o país era um projeto positivo que evoluía - Brasília, bossa nova, reformas, tudo parou ali.
O pensamento político que flutuava num processo feliz passou a sofrer a necessidade de "revisão". Perdêramos a inocência. Surgiu a esquerda autocrítica que viria a fundar o PSDB, duas décadas depois. A ela se opôs, desde então, a esquerda ortodoxa, que não renegou a antiga fé e foi desembarcar com seus dogmas no PT na mesma época.
Em 66, começaram as passeatas pela liberdade. Havia um espaço de transgressão possível, com uma vaga permissão de Castello e até de Costa e Silva num populismo meio bonachão. Achávamos que a liberdade resolveria tudo e, como a luta contra a ditadura era seríssima, nos sentimos cheios de razão, legitimados como vítimas nobres. A luta pela democracia nos fez cegos para as dificuldades de um país complexo, que conheceríamos depois.
Toda a resistência popular e cultural das manifestações de rua acabou com a decretação do Ato Institucional nº 5, coloquial também ( "Fecha o Congresso, Arthur, fecha!", aconselhou d. Iolanda). Em 68, um raio partiu a vida. A consciência nacional conheceu a morte. Não falo só da tortura ou da violência. Falo também da morte na alma, de todas as ilusões.
Quem não viveu de 69 a 72 não sabe o que é loucura, piração de consciências. Acabou a ideia de "povo unido", e começou a época dos francos atiradores, dos guerrilheiros suicidas, soltos em paisagens vazias. Saímos da ilusão para o desespero. De um lado, a morte heroica na guerrilha, do outro o "desbunde" místico na cultura arrasando as melhores cabeças no LSD e no misticismo - e tudo cercado pelo show da grana multinacional, criando o "milagre" brasileiro, jorrando yuppies endinheirados e dando ao povão a ideia de um grande progresso, feito de Transamazônica, Itaipu e porrada. Nem reforma agrária nem educação - Copa de 70 e estatismo retumbante, financiado pela onda bancária internacional.
Mas, em 72, começa a crise do petróleo, provocando a ideia de "abertura" política de Geisel (não por acaso). A Opep ajudou, pois, com menos petrodólares, a ditadura foi ruindo - sinistra ligação entre o mercado e nossos desejos. À medida que nossa capacidade de endividamento diminuía, crescia o desejo de democracia.
Quem ditava as regras? Os militares? Não. Fomos capturados em 64 para contrair a dívida externa, e "libertados" em 85 para pagá-la. E veio a democracia.
Ficamos todos de mãos dadas pelo "amor à pátria", de Ulysses a Quércia, de Tancredo a João Alves, o futuro "anão do Orçamento", na ingênua ficção de que éramos irmãos contra o mal autoritário dos militares. Tancredo morre na porta do Planalto, Sarney assume e, depois, Collor. E nesses anos, vimos com horror o país sendo pilhado, arrombado pelas "vítimas da ditadura" que tomaram o poder.
Até que Collor fez uma revolução contra si mesmo, expondo a olho nu, em seu narcisismo masoquista, o absurdo do sistema político debaixo das saias da "democracia". Sua loucura escancarada nos abriu os olhos para o país. Agora, a história se repetiu com Jefferson, o iluminista do mensalão. Depois, por acaso, por uma paixão de Itamar, entrou FHC, que nos deu oito anos de vida real e consciência pública, odiado pelo ciúme de seus colegas da academia e sabotado pela velha esquerda sua rival, toda lotada no PT. Aquela esquerda autocrítica dos anos 60 governou por oito anos tucanos e foi sucedida pela esquerda ortodoxa de Dirceu e depois pela alegoria televisiva do lulismo. Os velhos inimigos: revisionistas contra ortodoxos.
A verdade do Brasil é coloquial, feita de pequenos ladrões, sujos arreglos políticos, emperramentos técnicos. Hoje, sabemos que somos parte da estupidez secular do país. Prefiro nossa vergonha de hoje aos rostos iluminados dos jovens inocentes de antes. Assumir nossa doença talvez seja o início da sabedoria.
Clique abaixo e leia também:
Nenhum comentário:
Postar um comentário