Como mudar crenças e ideias que produzem sofrimento
Ruminar é a coisa certa a fazer, desde que você tenha quatro patas, coma capim e disponha de um sistema digestivo complexo. Bois, cabras, camelos e outros herbívoros são bons nisso. O alimento vai, devagar, da boca ao estômago. Depois, volta do estômago à boca. E, de novo, segue da boca ao estômago. Tudo em nome do bom aproveitamento dos nutrientes. Humanos não processam alimentos desse jeito, mas podem ser paquidérmicos ruminantes mentais.
Sabe quando os problemas não saem da cabeça? Vão e voltam? O perrengue aconteceu lá no passado, mas ainda mina as relações do presente? Os ressentimentos encorpam como bola de neve? Ruminantes raramente viram a página ou passam a borracha. O estrago pode ser grande.
“A ruminação é um dos fatores que contribuem para a depressão”, diz o psicólogo Robert L. Leahy, do Weill Cornell Medical College, em Nova York. Há poucas semanas ele fez uma apresentação por videoconferência durante o congresso da Associação Brasileira de Psiquiatria, realizado em Curitiba.
Eu estava lá e hoje aproveito para compartilhar um pouco das observações dele. Leahy falou sobre o uso da terapia cognitivo-comportamental no tratamento da depressão.
Essa forma de psicoterapia foi desenvolvida nos anos 60 pelo psiquiatra Aaron T. Beck, quando era professor da Universidade da Pensilvânia. O objetivo é a modificação de pensamentos e comportamentos inadequados ou inúteis.
É uma terapia de curta duração, bem estruturada, voltada para o presente e, em geral, mais barata que outras formas de atendimento psicológico. É um dos raros tipos de terapia que os planos de saúde aceitam pagar.
Até hoje, mais de 500 estudos científicos demonstraram os benefícios da terapia cognitivo-comportamental no tratamento de transtornos psiquiátricos, problemas psicológicos (questões familiares e conjugais, luto complicado, angústia, raiva, hostilidade etc) e outros problemas médicos com componentes psicológicos.
A terapia pode ser útil no tratamento de transtornos psiquiátricos como depressão, ansiedade, transtorno do pânico, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno bipolar, transtorno de déficit de atenção com hiperatividade, esquizofrenia e muitos outros.
Essa modalidade de terapia também tem ajudado no tratamento de enxaqueca, dores, obesidade, insônia, hipertensão, disfunção erétil etc. Mais informações sobre resultados de estudos podem ser encontradas no site do BecK Institute e da Federação Brasileira de Terapias Cognitivas.
Qual é a teoria por trás da terapia cognitivo-comportamental? Ela é baseada na ideia de que nossa percepção sobre as situações influencia a forma como nos sentimos.
Quando uma pessoa está em sofrimento emocional, é comum que tenha uma percepção distorcida dos fatos. O objetivo do terapeuta é ajudar o paciente a avaliar se seus pensamentos são, de fato, realistas. O segundo passo é aprender a mudá-los.
Ao pensar de forma mais realista, é provável que a pessoa se sinta melhor. “A terapia cognitiva ensina as técnicas para que o paciente seja seu próprio terapeuta”, diz Leahy.
Ainda nos anos 60, quando Beck desenvolvia a técnica, ele observou que os pacientes deprimidos tinham ondas de pensamentos negativos que pareciam surgir espontaneamente. É o que os terapeutas chamam de “pensamentos automáticos”.
Esses pensamentos azedam o bolo de qualquer mastigação mental. Distorcem a realidade e angustiam. Ruminar é ter pensamentos negativos e repetitivos sobre o presente ou o passado.
“Por baixo dos pensamentos automáticos, há sempre suposições inadequadas”, diz Leahy. Coisas do tipo: “Nunca vou conseguir ser feliz fazendo as coisas por conta própria”. Com a ajuda da terapia, o paciente pode perceber que essa é uma generalização que não corresponde à realidade.
Qual é a raiz desse estado mental que causa tanto sofrimento? No começo da infância, as crianças desenvolvem determinadas ideias sobre si mesmas, sobre as outras pessoas e sobre o mundo.
Uma boa definição sobre isso aparece no livro Terapia Cognitivo-Comportamental: Teoria e Prática, da psicóloga Judith S. Beck, filha do criador da técnica. A segunda edição desse clássico da área é um lançamento da Editora Artmed.
“As suas crenças mais centrais, ou crenças nucleares, são compreensões duradouras tão fundamentais e profundas que frequentemente não são articuladas nem para si mesmo”, escreve Judith. “A pessoa considera essas ideias como verdades absolutas – é como as coisas “são”.
Imagine uma pessoa que tem a crença nuclear de que é incompetente. Ela interpreta as situações por meio das lentes da sua crença, mesmo que a interpretação racional seja evidentemente inválida. A pessoa tende a selecionar as informações que confirmam sua crença nuclear. As informações contrárias são simplesmente desconsideradas ou desvalorizadas.
No livro, Judith representa esse modelo de processamento da informação num diagrama. Quando a pessoa se acha incompetente, todos os dados negativos são processados imediatamente. Eles fortalecem a crença nuclear. Algo assim:
“Não consigo aprender a mexer nesse novo programa de computador.”
“Não consigo um empréstimo no banco.”
Os dados positivos apresentados pela realidade são transformados em dados negativos:
“O chefe me elogiou, mas eu não merecia.”
“Escolhi o plano de saúde, mas levei muito tempo.”
Às vezes, os dados positivos nem são percebidos. Quem se acha incompetente nem se dá conta de que faz muitas coisas bem feitas. Por exemplo: pagar as contas dentro do prazo, consertar um problema no encanamento etc.
O desafio do paciente é analisar a validade dessas crenças nucleares e mudar os pensamentos automáticos. Aceitar que errar é humano e assumir seus erros é um bom começo.
“Todas as pessoas inteligentes que conheço já tomaram decisões erradas”, diz Leahy, autor de dezenas de livros, entre eles A regulação emocional em psicoterapia.
Ninguém gosta de errar, mas é preciso perder o medo de lidar com ele. Quatro frases de Leahy que vale a pena ter em mente:
1) Todo mundo erra.
2) Erros são informação. São parte do progresso.
3) Um erro não é o fim do mundo.
4) Não tenha orgulho de ser perfeccionista.
A terapia cognitiva-comportamental não é uma panaceia. Em alguns pacientes, o efeito pode ser passageiro. Outros se beneficiariam mais se tivessem acesso a outras formas de terapia – de longo prazo e grande investimento (financeiro e emocional).
Em muitas situações, a terapia não substitui os remédios. Pacientes com depressão grave e outros transtornos psiquiátricos raramente podem ser tratados adequadamente sem medicamentos.
Em saúde mental, radicalismos podem ser bons para um ou outro grupo, mas péssimos para os pacientes. Ao final da apresentação, Leahy deixou um recado atualíssimo.
“Os pacientes nos procuram porque querem se sentir melhor. Não vêm por causa da religião da terapia cognitiva ou de qualquer outra”, disse. “Não há um tratamento que funcione para todos o tempo todo.”
Ninguém merece sofrer sozinho. O passo transformador é assumir que precisa de ajuda. Como Leahy, não acredito em cura. Acredito em ajuda. Ele não acredita em cura da condição humana. Nem eu.
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