A alma de João parecia ter ido junto com o peso. Não que fosse uma alma pesada, pelo contrário: alma aberta, generosa, risonha, festeira. Alma de gordo
O João da Patuleia, amigo cachoeirense dos tempos de faculdade, avisou que vinha lá em casa uma equipe sob seu comando filmar um depoimento para projeto televisivo. Disse que ele não poderia comparecer e pediu que eu recebesse o pessoal. Na data marcada, a equipe tocou a campainha, e Antônia, a faxineira, atendeu. Saí do banho de roupão e me desculpei. Vesti-me e fui à sala, onde um sujeito magérrimo que eu nunca tinha visto estendeu a mão. Eu até brinquei:
— Não é o João, é?
Dei as costas e fui falar com o resto da equipe. O sujeito colossalmente magro me chamou de volta com uma voz redonda.
— Venha cá!
— Não...
— Sim, sim.
— Não é possível...
— É, sim senhor.
Era, em teoria, o João, 70 quilos mais magro graças a uma cirurgia bariátrica. Na faculdade já era roliço, mas, só com as décadas, tornou-se um imenso João, grande como sua afetuosidade e também seu apelo popular.
— João!!!! Você perdeu a alma!
— Calma... a alma, não.
— A alma! A alma!
A alma de João parecia ter ido junto com o peso. Não que fosse uma alma pesada, pelo contrário: alma aberta, generosa, risonha, festeira, benfazeja mesmo nos momentos em que a severidade se impunha. Alma de gordo, se valesse a acepção do Júlio César de Shakespeare, que desconfiava de Cássio por ser um sujeito magro, portanto, indigno de confiança. Em tradução livre de momento, dizia César ao fiel Marco Antônio:
“Quero homens gordos em volta de mim. Homens com o semblante lustroso, que durmam à noite. Veja Cássio: é magro, esfaimado. Pensa muito. Tais homens são perigosos.”
Na tragédia histórica do bardo inglês, a paranoia de César se justificaria pela conspiração vindoura, da qual Cássio faria parte, e que levaria à morte do imperador.
Mas há exceções: existem patifes gordos, e magros santos. No caso de João, porém, eu o encontrara pela última vez em Vitória, onde sua mulher nos serviu uma costela cozida com fruta-pão da qual meu amigo comeu fartamente.
Estava no ápice de sua inflação abdominal.
Na época, entre cervejas e capas de gordura, ele me confessou que andava estudando tudo a respeito da cirurgia bariátrica, e cogitava seriamente tosquear a fauna adiposa que se agregara a ele como um traço de personalidade nobre e indispensável. Digna de um chapa do rei.
Ainda desconfiado (de sua identidade e, caso confirmada, da perenidade de sua alma), abracei o pretenso João com cuidado para não magoar sua delicada estrutura óssea. O abraço do magro veio forte, o que me tranquilizou. Olhei com atenção para a fisionomia mais encovada e para o gogó de galo que historiografava a extinta papada de João. Até encontrar, nos olhos e no sorriso sem as bochechas de outrora, o antigo fulgor. A voz, por outro lado, continuava a ter uma emissão gorda e empostada, a cadência algo estudada e pomposa, mesmo nos êxtases de informalidade.
Segurei suas mãos.
— É você.
— Sim, sou eu.
— João!
— O próprio.
A equipe da produtora do João já estava montando os apetrechos para a filmagem. Num impulso, chamei-o à cozinha, onde fica o armário com minhas bebidas destiladas. Antes, perguntei se ele andava com fome.
— Fome não é algo que faça parte da minha contemporaneidade. Está tudo grampeado e ocupado parcialmente pelos dispositivos bariátricos.
Temi pelo pior: conhecedor profundo de destilados a ponto de escrever sobre o assunto, o João não poderia sobreviver sem molhar o beiço a intervalos razoáveis.
— Fique tranquilo. Posso. E devo.
No armário da cozinha havia um pouquinho de tudo. Cachaças de Minas, do Rio, do Nordeste e da Bahia. Um ron viejo colombiano luzia numa das laterais. Um malte escocês. Uma garrafa esvaziada à metade de conhaque francês. Uma quase vazia de bagaceira portuguesa. E uma coberta por espessas folhas secas amarradas com barbantes de palha, de gênero e conteúdo ocultos.
A degustação, que durou uns bons minutos, contou com a força de alguns colaboradores da equipe do João. Antônia, muito religiosa, recusou.
— Se tomar eu caio morta.
João tomou um pouco de cada variedade, com exceção da bagaceira, o que não chegou a ser uma desfeita, embora eu não vá desistir de tomá-la em sua companhia. Gotejada no café, como ensinou meu pai, desde menino, em almoços em Niterói. Meu pai, gordo e alegre, às vezes triste, ora afável, ora selvagem.
Meu pai, que anda bem magro, como o João, e, mesmo ateu, parou de beber como a Antônia, mas continua a ter alma confiável, de gordo, amigo de César, com certeza.
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