sexta-feira, 14 de setembro de 2012

FERNANDA TORRES - Marginais

Não tinha nada a ver com reivindicação social,
era o mal-estar da sociedade em pessoa, pegando um ônibus.

Em 1996, passei uma curta temporada em Graz, na Áustria. Fui visitar Gerald Thomas, que dirigia uma ópera para o teatro municipal da cidade.

Uma manhã, ao embarcar em um impecável ônibus articulado lotado de senhorinhas europeias, dei de cara com três jovens, dois meninos e uma menina, refastelados no banco comprido para mais de três pessoas. Pareciam astros de rock não muito afeitos a banho, e destoavam por completo da placidez do restante do coletivo.

Um dos rapazes e a moça se beijavam em um duelo de línguas digno de "Alien, o Oitavo Passageiro". Ela abriu a braguilha dele e meteu a mão cueca adentro. Era o preâmbulo de um coito agressivo que prometia acontecer ali, diante de nós.

Uma velhinha se levantou, devia ser o ponto dela, e se viu obrigada a cruzar a bacanal. O moleque que não estava possuindo a ninfeta barrou a passagem. Com três palmos a mais do que a anciã austríaca, ele se curvou sobre ela como um general nazista e descarregou um rosário de impropérios naquele idioma que xinga como nenhum outro.

Os passageiros se fizeram de mortos, reféns da furiosa insatisfação juvenil. Eu fugi. Desci no ponto com a velha dama. Não arrisquei ficar para assistir a orgia.

A limpeza das ruas, a excelência do transporte público, a paisagem bucólica, todas as dádivas do império Austro-Húngaro iam de encontro ao desassossego espiritual dos guris. Não tinha nada a ver com reivindicação social ou posicionamento artístico, era o mal-estar da sociedade em pessoa, pegando um ônibus, em uma manhã de sol no Tirol.

Me lembrei do ocorrido ao ler a declaração do curador da Bienal de Berlim, Artur Zmijewski, depois de ser acertado por um balde de tinta amarela, atirado pelo pichador brasileiro Cripta Djan.

Durante um workshop, o grupo de Djan pichou as paredes da igreja centenária que servia de sede para o evento. Não era o combinado, os artistas deveriam se ater aos tapumes instalados pela curadoria.

Segundo, Zmijewski, "O objetivo final dos pichadores é autopropaganda de políticas da pobreza e da luta da classe baixa contra os ricos no Brasil. A igreja é propriedade de uma sociedade civil, cujo objetivo é coletar dinheiro para renovar prédios históricos e abri-los para distintas atividades culturais do público".
A bem-intencionada associação da qual faz parte a igreja estaria fora do suposto alvo de ataque dos brasileiros: o capital maligno gerado pela burguesia paulista.

Em uma entrevista dada à Folha, pouco antes de embarcar para a Alemanha, Djan foi bem claro a respeito das motivações que o norteiam.

"Esse movimento da pixação com 'x' começou mesmo com os punks, tá ligado? A galera tinha esse lance de protestar, esse cunho político [...] Não era aquele político da época da ditadura, mas o punk tinha uma linha de anarquia e tal, sempre protestando e questionando. A motivação dos caras é a disputa. É essa busca existencial, sabe? O cara não era porra nenhuma... Na pichação, ele encontra uma forma de ser reconhecido sem a questão do dinheiro, né?"

Zmijewski acertou ao falar em autopropaganda de políticas da pobreza, mas errou em achar que esses grupos fariam diferença entre os bons e os maus ricos. É anarquismo, Bakunim. São bandos, gangues, marginais no sentido heroico de Hélio Oiticica.

Esperar do Cripta outra atitude que não aquela, é querer domar o que os move.

Da mesma forma, achei oportuna a intervenção de Caroline Pivetta da Mota na Bienal de São Paulo, pichando o vazio da arte que a mostra pretendia discutir. Botaram a polícia em cima. Tinham mesmo que botar, caso contrário, a atitude de Caroline ficaria incompleta.

Manifestações artísticas desse tipo forçam a mais liberal, social e sacra das instituições para a posição do poder castrador. Se isso não acontecer, o ato é falho.

Não importa o tamanho do seguro-desemprego, o trio do "busum" austríaco tem parentesco com o pessoal de Barueri. "Todo mundo tem um vazio dentro de si", diz Caroline. O curador é que acha que a luta de classe é a única forma de insatisfação legítima do lado de baixo do Equador.


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