Marcamos no Café Severino a comemoração pelo retorno do Gustavo ao nosso grupo. Nosso amigo de muito tempo, Tavinho andou arredio, devido a um turbulento divórcio que enfrentou por mais de um ano e que o deixou deprimido. Com isso, afastou-se de tudo e de todos, indo morar um largo tempo em Petrópolis. Agora, dissipadas as negras nuvens da turbulência e já vivendo novamente em paz, eis que ele retornava a nós e ao nosso reino. Não é a primeira vez que um divórcio penaliza algum membro do nosso grupo. Afinal, todos nós já cruzamos a faixa dos 60 anos e contabilizamos mais de um casamento, à exceção de alguns poucos, como Carla e Gabriel, ambos na casa dos 30. Eles fazem parte da nova geração de frequentadores da nossa roda de vinho e grana padano. Gosto dessa presença jovial, pois impede que as reuniões fiquem lacrimosas, cheias de recordações, e que os assuntos mais frequentes sejam os incômodos na lombar e na cervical, além do medo do diabetes e a comparação entre os níveis de colesterol e glicose. Com a mocidade, fala-se da vida, não de doença e morte.
Mas nessa tarde, mesmo com a presença deles, o assunto perigoso voltou a imperar, enquanto nós cinco esperávamos a chegada da turma toda, inclusive do festejado Gustavo.
— Minha glicose está em 105 — anunciou o Raul.
— É alta. Você já está diabético — sentenciou Alfredo, que é um assumido hipocondríaco.
— Pré-diabético — corrigiu Raul, já um pouco irritado.
— Acima de 99… — tentou argumentar o Alfredo, com um sorriso maldoso.
Raul cortou:
— Ah, não vai atacar de médico, que você, até onde eu sei, é funcionário aposentado da Caixa Econômica.
E tentou encerrar a discussão:
— O importante é a saúde como um todo. O fundamental é sentir-se saudável. E é como eu me sinto. Caramba! Você só sabe falar em doença!
Alfredo contra-atacou:
— Só me diz uma coisa: o seu colesterol quanto está?
Olhei o Raul e percebi que ele estava a ponto de apelar. Antes que eu pudesse fazer alguma coisa, o Alfredo puxou da carteira os resultados do seu último hemograma, propondo um sinistro desafio:
— Vamos comparar os nossos hemogramas! Você tem o seu aí?
— Claro que não. Não sou louco como você!
— Pelo menos sabe de cor os principais índices?
E enumerou alguns:
— Eritrócitos, hemoglobina, leucócitos e plaquetas. Vai, me diz. Aposto que você está anêmico!
Raul saltou da cadeira. Houve uma inquietação no café, já se prevendo uma luta de moleques entre homens da terceira idade, o que seria, no mínimo, ridículo.
— Chega — bradou ele, batendo com a palma da mão na mesa.
— Calma — disse eu. — Estamos aqui para festejar. Daqui a pouco chega todo mundo e vocês…
Mas Raul emendou, virando-se para o Alfredo, o indicador quase encostando no rosto do amigo:
— Que você seja hipocondríaco, não tenho nada com isso. Que veja em você todas as doenças, imaginárias ou não, o problema é seu. Mas colocar doenças nos outros, aí não está certo!
E voltou a sentar-se, bufando. Um tempo de silêncio. Olhei o casal jovem. Gabriel passava os olhos num jornal, indiferente à contenda, e Carla olhava a cena, sorrisinho maroto nos lábios. Percebendo que a reunião estava agonizando por sua culpa, Alfredo amenizou:
— Me desculpem. Acho que exagerei. Vou embora. Vou ver um carro para comprar, que o meu já está num bagaço de dar pena. Rateando. Como um coração a ponto de enfartar. Quem é que tem uma sugestão para me dar? Pensei numa Pajero esporte…
Foi quando Carla, sempre tão tímida e até um pouco cerimoniosa, cortou em cima, numa voz suave e com os olhos brilhando:
— Por que você não compra uma ambulância?
A gargalhada foi geral, contaminando o Raul e o próprio Alfredo. Nesse mesmo momento, começaram a chegar os velhos amigos, com Gustavo à frente, sorridente, feliz.
E fez-se a paz no reino do Café Severino.
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