Quando cheguei ao Rio com Bethânia, no final de 1964, começo de 1965, eu vinha do Méier para a Siqueira Campos, onde ficava o Teatro de Arena, que passou a se chamar Opinião por causa do espetáculo do qual minha irmã tinha sido convidada para participar, e, depois da função, íamos ao Cervantes, ao Zicartola e à Estudantina. A Estudantina Musical, gafieira que deveria ser estudada em close reading pela Liv Sovik (para livrá-la de vez do preconceito racialista), existe desde os anos 1920, hoje na Praça Tiradentes. Toda vez que volto lá entro no mesmo estado de espírito que experimentei pela primeira vez naquela época. Uma alegria da festa (coisa essencial para mim) em situação peculiar. Era como os bailes do Apolo em Santo Amaro — ou os que periodicamente aconteciam na quadra de esporte do ginásio Theodoro Sampaio —, só que com a regularidade diária de um bar e com a cultura da dança ornamental de casal enlaçado desenvolvida ao nível do virtuosismo.
Não que não tentássemos algo disso no Apolo ou no ginásio, mas na Estudantina o desenvolvimento da tradição alimentada no tango (o samba e o tango da voz e da história de Carmen Miranda) é levado ao máximo. Os ornamentos feitos com o corpo que o tango cultivou, adaptados — via maxixe — ao ritmo do samba (e à informalidade brasileira), produzem no ambiente uma felicidade que as casas de tango de Buenos Aires — muito mais sérias e estáveis, respeitáveis e mundialmente reconhecidas — não conhecem. A Estudantina é, por essas e outras muitas razões, um elemento crucial na amarração da cultura carioca. Ela sustenta hábitos, estilos e gostos essenciais para a cultura da Cidade dos Brasileiros (como João Gilberto chama o Rio), em áreas geográficas do seu perímetro urbano (e em áreas mentais de seus habitantes) onde muitas vezes nem seu nome é conhecido.
Pois bem. Dizem-me que a Estudantina está para fechar. Dependendo de um tombamento que passa pela prefeitura. O prefeito Eduardo Paes poderia agir no sentido de, no fim do seu mandato (e no desejo de estendê-lo), ligar seu nome e sua energia a um núcleo da vida carioca. Essas coisas são mais fortes do que macumba ou sessão de descarrego de igreja evangélica: ter seu nome ligado à salvação de algo tão central ao significado do Rio pode dar superpoderes ao atual prefeito, dignificando sua passagem pelo posto, se não garantindo sua reeleição no segundo turno contra Freixo (sim, o Ex-Blog do Cesar Maia explica que isso está por acontecer, embora, é claro, ele não cite Freixo nominalmente).
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Em “À beira do caminho” a visão da geografia brasileira corresponde à profundidade do ator João Miguel. As estradas, as chapadas, as caatingas, os serrados, os rios, as pontes, as entradas das cidades (inclusive, talvez principalmente, a de São Paulo) dizem mais do que paisagens costumam dizer em filmes bem fotografados: vão no fundo da alma e revelam um país que ainda estamos aprendendo a ver. Dira Paes já é uma instituição nacional. E nós a amamos com a atenção exigida não só por seu talento mas também pela sua sensatez. Ludmila Rosa encanta e convence. Mas são as cenas em que João Miguel dialoga com Vinicius Nascimento que refletem a força das locações. Que tenha sido “A distância” a primeira canção de Roberto a ser ouvida no filme me emociona de um modo complexo e que serve para sustentar o sentido de todas as outras (tantas!) intervenções musicais que se dão ao longo da história. Porque para mim, em primeiro lugar, essa canção está fortemente ligada ao grande cinema, já que foi a mesma escolhida por Visconti para a cena crucial de “Violência e paixão”. São conversas internas do cinema consigo mesmo, segredos, que, quando caem em meus ouvidos, me fazem chorar mais do que os lances sentimentais de qualquer trama. As moças choravam quando esses lances surgiam. Mas eu já estava chorando desde bem antes — por essas razões estranhas — e na verdade tinha de parar de chorar para atentar ao drama.
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