domingo, 12 de outubro de 2014

TODA CRIANÇA É UM MAGO - Augusto Branco

Quando crianças, nós não conhecemos limites. Num curto período de tempo, aprendemos a falar sem nunca antes termos falado coisa alguma. Aprendemos a andar com nossos membros frágeis para explorar o mundo sem nunca antes termos dado um um passo sequer. Aprendemos a observar, a reconhecer, a alegrarmo-nos, a sofrer, e continuarmos nossas experiências de explorações e descobertas.

Quando crianças, conseguimos tudo isso, sim, por que temos o apoio de todos que nos cercam, mas principalmente por que em nenhum momento nós pensamos que não somos capazes.

É como se movesse dentro de nós o Espírito do Mago, que conhece e domina todos os aspectos do mundo. O Mago sabe que tudo lhe é possível, por que tudo provém apenas de sua vontade. Assim, o Mago apenas deseja, quer, tenta e, irremediavelmente, consegue. Somos todos Magos quando crianças, mas aos poucos vamos perdendo nossa magia, entregando-a ao acaso toda vez que duvidamos de nós mesmos.

Então é preciso notar que para realizar maior parte da coisas que desejamos, precisamos recuperar a magia da infância, precisamos recuperar o Mago que há dentro de nós, e fazer valer a crença de que confiando exclusivamente em nós mesmos, podemos ultrapassar qualquer fronteira!




domingo, 21 de setembro de 2014

MANOEL CARLOS - Mas Deus fala!

Quando meu pai ficava sabendo de um crime brutal, principalmente os que envolviam crianças, perguntava, com desgosto, pelo paradeiro de Deus. Por onde andava o Todo-Poderoso no momento da tragédia? Como Ele foi permitir que tal desgraça acontecesse debaixo do céu que Ele mesmo criara? Em resumo: por que tantas vezes Deus se escondia, não se manifestava, não segurava a mão criminosa que se abatia sobre inocentes e indefesos? E minha mãe, fazendo o sinal da cruz e olhando para ele com piedade cristã, respondia, invariavelmente, que Deus não se escondia, que estava em todos os lugares, mas que dentro de nós só entrava quando lhe abríamos as portas do nosso coração e mente, pois dispomos do livre-arbítrio, que significa, muito simplesmente, a liberdade de escolher entre o bem e o mal.

Minha mãe tinha uma formação religiosa bastante coerente, embora não combinasse muito com o que ensina a Igreja Católica. Por exemplo: ela acreditava pacificamente no céu e no purgatório. Um para premiar os bons, o outro para castigar os maus até que bons se tornassem. O purgatório seria assim uma espécie de exame de admissão à entrada no céu. E a imagem que tínhamos — nós, crianças — dessa teoria era
de um corredor palmilhado de brasas, por onde teríamos de caminhar descalços ao encontro da felicidade do outro lado. Resumindo: não se alcança a Graça sem sofrimento. Inferno? Não. Minha mãe não acreditava.

— Deus é misericórdia — argumentava ela. — Como pode condenar alguém ao fogo eterno? Nada é eterno a não ser o próprio Deus.

Mesmo com essas discordâncias da Igreja, minha mãe era de uma fé inabalável em todos os ensinamentos da religião católica. A tal ponto que uma vez, quando eu participava de uma aula como congregado mariano, um religioso franciscano, amigo da família, confessou que tudo que ele queria e pedia a Deus para conseguir era a fé absoluta, total, sem questionamentos, da minha mãe.

— Mas ela questiona — provoquei. — Tanto que não acredita no inferno.

— Eu também não — respondeu ele. — Mas negar o inferno não é questão de fé, e sim de bom-senso.

Eu me lembro que isso mexeu com a minha cabeça de criança, abalando um pouco a minha fé, que era (só mais tarde percebi) uma homenagem que eu prestava à minha mãe.

E mesmo hoje — 22 anos depois de ela ter morrido — eu ainda faço coisas pensando apenas em agradar a ela e evito fazer outras que sei que ela não aprovaria.

Aprendemos muito com os nossos pais, mesmo, ou principalmente, quando discordamos deles. E o que aprendemos na infância sobrepõe-se ao que virá depois, na juventude e na idade madura. À medida que vou vivendo, vou me lembrando, mais nitidamente, do que ouvi deles — da minha mãe principalmente — sobre a vida e o viver.

Sobre a morte e o morrer.


— Deus fala — garantia minha mãe. — Quando não ouvimos, é porque estamos surdos.





quarta-feira, 17 de setembro de 2014

ALGUÉM CHATEOUVOCÊ? SAIBA COMO SUPERAR - Thaís Petroff

"O outro pode ser um espelho de nosso desconforto emocional"

Quantas vezes nos chateamos com as atitudes das outras pessoas?

Quantas vezes nos sentimos agredidos ou não levados em conta em função da forma de agir dos outros?

Você já se percebeu assim alguma vez em sua vida?

Se sim, te convido a uma reflexão sobre esse assunto.

Muitos de nós, em inúmeros momentos, ficamos chateados por conta de comportamentos que alguém teve conosco. Pode ser um familiar, um amigo, um vizinho ou até um total desconhecido. Fato é que, sob nossa percepção, aquele modo da pessoa conduzir a situação nós é bastante desconfortável, a ponto de ficamos mexidos emocionalmente.

Não temos controle sobre o comportamento dos outros. O que podemos fazer como um experimento, é sermos assertivos dizendo à pessoa que nos feriu o que aquela ação provoca em nós e, consequentemente, como nos sentimos.

Ser assertivo é muito mais eficaz do que ser passivo ou agressivo (veja aqui). No entanto, apesar de aumentar as chances, ainda assim não podemos determinar uma mudança na atitude da outra pessoa. Por isso, não deve-se basear sua assertividade no resultado que ela terá sobre o outro, mas sim, sobre como isso é uma boa maneira de você se expressar e não reter suas emoções (as quais podem ser somatizadas e causar inúmeros problemas de saúde).

O outro pode ser um espelho de nosso desconforto emocional

Fora a assertividade, há um outro ponto que gostaria de focar quando nos sentimos desconfortáveis frente aos comportamentos de outras pessoas. Podemos utilizar os outros como espelhos para nós, questionando tanto se temos atitudes parecidas ou ainda se fizemos algo que pudesse influenciar na ação desses.

É fácil apontar o dedo, criticar e/ou se desapontar quando alguém nos faz algo. Mas é difícil perguntarmos se em algum momento fizemos algo parecido com isso que nos incomoda.

Justamente esse comportamento percebido no outro, que nos causa tanto desconforto, não é por dizer algo a nosso respeito, ou será que nós mesmos não fazemos algo semelhante em outro contexto ou com outra pessoa?

Com essa reflexão podemos transformar um mal-estar em um aprendizado para nós, saindo da posição de vítima e passando para um papel ativo de agente de mudança.

Quantas vezes será que também magoamos, maltratamos, desrespeitamos outras pessoas? E... quantas vezes fazemos isso sem nem termos consciência do que estamos fazendo. Se nos sentimos destratados por que o outro também não se sentiria assim?

Se quisermos ser respeitados devemos respeitar os outros. Se quisermos que sejam gentis conosco, também devemos ser gentis. Se não queremos que levantem a voz conosco, falemos em voz baixa. Como o próprio ditado popular demonstra: devemos dar o exemplo e não somente falar ou criticar. Por isso mais do que você fala, perceba o que você faz.


Assumamos uma postura mais ética, cuidadosa, polida e amorosa e percebamos o resultado que ela tem no ambiente à nossa volta. Finalizo essa reflexão com uma belíssima frase de Gandhi, que justamente demonstra a ideia central desse texto: "Nos devemos ser a mudança que queremos ver no mundo."



sexta-feira, 29 de agosto de 2014

AGRESSIVIDADE: UMA SIMPLES E COMPROVADA MANEIRA DE CONTROLAR

Um novo estudo analisou a eficácia de uma técnica chamada “autodistanciamento” 
para afastar pensamentos e comportamentos agressivos. 
O resultado foi animador

Dominik Mischkowski, principal autor da pesquisa e estudante de psicologia na Universidade Estadual de Ohio (EUA), e Brad Bushman professor de comunicação e psicologia na mesma universidade, conduziram o estudo ao lado de Ethan Kross, da Universidade de Michigan (EUA). A pesquisa foi publicada no periódico Journal of Experimental Social Psychology.

Em dois experimentos, um com 94, outro com 95 estudantes universitários, os cientistas analisaram as reações e pensamentos agressivos dos participantes após serem provocados.

Os dois ambientes envolviam a resolução de anagramas difíceis (reorganizar um grupo de letras para formar uma palavra como “pandemônio”), e os participantes não sabiam que o estudo era sobre agressão (eles acreditavam que era sobre criatividade e música).

No primeiro experimento, os participantes levavam broncas do pesquisador, que questionavam sua habilidade de receber instruções – uma técnica que sabidamente provocaria raiva.

Mais tarde, os alunos foram orientados a rever, em sua mente, a tarefa do anagrama. Três grupos foram formados: em um deles, os alunos adotaram uma perspectiva de autoimersão (ver a situação se desdobrar através de seus olhos como se estivesse acontecendo tudo de novo); no outro, adotaram a perspectiva de autodistanciamento (afastar-se da situação a um ponto no qual você possa assistir o evento se desenrolar de longe) e o grupo de controle não recebeu instruções de como analisar seus sentimentos.

Em seguida, os pesquisadores testaram os participantes para pensamentos e sentimentos agressivos e de raiva. Ficou comprovado que os alunos que adotaram a perspectiva de autodistanciamento tiveram menos pensamentos agressivos e sentiram-se menos irritados do que os do grupo autoimerso e de controle.

No segundo experimento, os cientistas foram além: mostraram que a técnica diminui a violência e agressão em si, e não só os pensamentos agressivos. Os participaram fizeram a mesma tarefa do anagrama, mas como um parceiro que não estava presente fisicamente, que deveria ser outro aluno (mas era um pesquisador). Esse “aluno” foi quem desferiu as provocações aos participantes.
Depois de passarem pela mesma terapia do primeiro estudo (dividido em três grupos com três abordagens diferentes), os alunos ficaram sabendo que competiriam com seu ex-parceiro (que os havia provocado), e que quem ganhasse a tarefa teria direito a “explodir” o ouvido do perdedor com um ruído ensurdecedor no seu fone de ouvido, e ainda poderia escolher por quanto tempo.

O resultado novamente mostrou que a técnica de autodistanciamento era eficaz, mesmo logo após uma provocação, para diminuir a raiva. Em outras palavras, quem passou por essa técnica tendeu a escolher ruídos menos intensos e mais curtos contra o seu parceiro.

Não deixe a raiva tomar conta
Muitos acreditam que tentar se concentrar em sua mágoa e sentimentos de raiva para compreendê-los ajuda em uma situação de raiva. Mas é a pior coisa que existe. “Se você se concentrar demais em como você está se sentindo, o tiro sai pela culatra. Isso mantém os pensamentos e sentimentos agressivos ativos em sua mente, o que lhe torna mais propenso a agir agressivamente”, disse Bushman.

Se distrair também não ajuda. Quando você está irritado, pensar em algo calmante para tirar a mente da raiva só funciona momentaneamente. Ou seja, a raiva irá retornar quando a distração passar.

“Mas o autoafastamento realmente funciona, mesmo logo após uma provocação – é um instrumento de intervenção poderoso que qualquer pessoa pode usar quando estiver com raiva”, comentou Mischkowski. “O segredo é não ficar imerso em sua própria raiva e, ao contrário, ter uma visão mais distanciada”.

Resumindo: quando você sentir raiva, tente fingir que você está vendo a cena à distância, que você é um observador, e não um participante da situação estressante. A ciência alerta: é o melhor jeito de se acalmar.
[MedicalXpress, ScienceDaily, PsychCentral]



UMA MANEIRA SIMPLES DE FAZER MAIS AMIGOS, CONFIRMADA PELA CIÊNCIA

Não é de hoje que pais do mundo todo insistem em colocar na cabeça dos seus filhos que é importante se lembrar das palavrinhas mágicas “com licença”, “por favor” e “obrigado”. Agora, a ciência provou que isso é mesmo importante. Um estudo liderado pela Universidade de Nova Gales do Sul, na Austrália, demonstrou pela primeira vez que agradecer a um novo conhecido pela sua ajuda os torna mais propensos a procurar uma relação social permanente com você.

 “Dizer ‘obrigado’ passa um sinal valioso que você é alguém com quem poderia ser formado um relacionamento de alta qualidade”, diz Lisa Williams, psicóloga da instituição, que conduziu a pesquisa com Monica Bartlett, da Universidade de Gonzaga, nos EUA.

O estudo, publicado no periódico “Emotion”, envolveu 70 universitários que davam conselhos a um jovem estudante. Alguns desses conselheiros recebiam agradecimentos por sua ajuda.

A pesquisa foi desenhada para testar uma teoria proposta há dois anos que explica os benefícios da gratidão aos indivíduos e à sociedade. A teoria do “encontrar, lembrar e vincular” sugere que a gratidão ajuda as pessoas a desenvolver novas relações (encontrar), construir sobre as relações existentes (lembrar) e manter ambas (vincular).

O estudo incidiu sobre o primeiro aspecto da teoria – encontrar. Universitários, pensando que estavam orientando estudantes do ensino médio, tiveram que comentar as redações que eles fizeram para tentarem entrar na universidade. Em resposta, todos os mentores receberam um recado escrito à mão por seus supostos pupilos. Em aproximadamente metade dos casos, a nota incluía uma expressão de gratidão: “Muito obrigado por todo o tempo e esforço que dedicou ao fazer isso por mim!”.

Os estudantes universitários que receberam os recados com os agradecimento foram mais propensos a fornecer seus dados para contato – tais como o seu número de telefone ou endereço de e-mail – para o aprendiz do que os outros. Os pupilos gratos também foram classificados como tendo personalidades significativamente mais amigáveis.

Talvez surpreendentemente, este tipo de experiência não tinha sido feita antes. “Nossos resultados representam a primeira evidência conhecida de que a expressão da gratidão facilita o início de novas relações entre pessoas anteriormente não familiarizadas”, afirma Williams. “Com mais pessoas se comunicando por redes sociais, como Facebook e Twitter, seria interessante saber se apenas observar alguém expressar gratidão aumenta o desejo de outra pessoa de formar uma relação com aquele indivíduo”, especula.
[Medical Xpress, Social Caffeine]




segunda-feira, 18 de agosto de 2014

IVAN MARTINS - Amor não se improvisa

Só damos aos outros aquilo que andamos recebendo a vida inteira

Uma das minhas vizinhas de prédio gosta de me lembrar quanto pareço feliz desde que me casei. A gente se encontra no elevador, e ela, invariavelmente, observa que continuo com o sorriso dos homens apaixonados. Eu rio, embaraçado e contente, e conversamos um pouquinho. Além de gentil e afetuosa, minha vizinha é romântica. Ela perdeu o marido há pouco tempo, depois de um casamento de 30 anos, e projeta nas pessoas ao redor um pouco da felicidade que viveu. Ao agir assim, de maneira tão doce, ela me lembra que as pessoas dão ao mundo aquilo que receberam. Pode ser amor e gentileza, pode ser o contrário.

Isso é muito claro quando a gente entra na intimidade de um relacionamento. Em pouco tempo, começamos a perceber do que a outra pessoa é feita. Ou, melhor dizendo, de que tipo de experiência amorosa ela é constituída. Pode ser de um amor tranquilo e seguro, que resulta num tipo de gente. Pode ser de um amor escasso e algo desesperado, que dá outro tipo de ser humano. Pode ser - na pior das hipóteses - da falta de amor (ou da percepção da falta de amor, que dá na mesma). Dela resulta uma gente arisca, dura, refratária aos próprios sentimentos e aos dos outros.

A experiência universal sugere que a gente não escolhe por que tipo de pessoa se apaixonará. Quando se dá conta, já aconteceu - e estamos envolvidos, até o pescoço, com alguém que pode ser muito difícil de amar, por ter as piores experiências no assunto. Nenhum de nós tem currículo perfeito nesse tema. Posta no divã de um analista, a maioria revelaria buracos enormes na sua biografia afetiva. Alguns, porém, têm traumas mais visíveis, rombos escancarados que se traduzem, sobretudo, na falta de naturalidade quando se trata de afeto. Gostar para eles é difícil, doloroso, complicado. Receber o sentimento do outro também. O cotidiano da relação, que exige a troca de sentimentos simples, fica truncado. É como se as pessoas falassem, afetivamente, línguas diferentes. Elas não se compreendem, porque a uma delas (ou às duas) falta o vocabulário essencial do amor.

Talvez, a muitos, isso pareça abstrato. Para mim, é muito concreto.

Tendo vivido e convivido com pessoas muito diferentes, me é claro como a experiência amorosa (familiar e romântica) produz diferentes atitudes diante do amor - e como essas atitudes são modificadas pelas experiências da vida adulta. Quando começamos a nos relacionar eroticamente, somos adolescentes. Levamos para os braços do outro, quase intactas, nossas questões infantis e familiares. À medida que a gente cresce e vai tendo outras experiências, os sentimentos evoluem. Ninguém está pronto e acabado aos 20 ou aos 40 anos. Nem aos 70, acho.

A impressão de não ser a criança mais amada do mundo pode diminuir ou aumentar nos primeiros envolvimentos. A sensação adolescente de ser o centro das atenções (ou de ser rejeitado pelo mundo) pode ser negada ou confirmada por um grande amor. O medo e a insegurança podem ser ampliados numa sequência de relações instáveis, ou reduzidos por um relacionamento intenso, seguro e duradouro. A vida não para de nos formar. Quem a gente escolhe para estar a nosso lado tem papel fundamental nessa formação.

Por isso tudo, a atitude da minha vizinha me parece tão bonita. Ela sabe, por ter vivido, que as pessoas se transformam pela experiência do amor. Divulga esse evangelho de uma forma discreta e efetiva. Na última vez em que me disse que eu parecia feliz, eu acabara de ter uma briga estúpida e desnecessária com minha mulher. A conversa no elevador, na saída para trabalho, me ajudou a lembrar quanto gosto e quanto essa relação é importante para mim. Horas depois, peguei o telefone e liguei para pedir desculpas. 

Talvez fizesse isso de qualquer maneira, mas gosto de pensar que minha vizinha me ajudou a lembrar que fazer as pazes era urgente e necessário.




domingo, 17 de agosto de 2014

O MILAGRE DA VIDA BEM VIVIDA - Mônica El Bayeh

Meu maior temor não é morrer, mas desaparecer das lembranças
Descobrir que vai morrer na verdade não chega a ser uma grande descoberta. Afinal, é a única certeza que se tem em tudo. Morreremos, isso nos torna absolutamente iguais. O recheio que tecemos entre o nascimento e a morte é que produz a grande diferença.
Lisa Russell, inglesa, tinha 37 anos, um marido, duas filhas de oito e treze anos e um câncer de pulmão inoperável. Tempo de espera para o inevitável? Dezoito meses, se muito. É de desesperar. Mas desesperar custaria uns minutos a menos, pense bem.
Saber que tem um prazo a gente sabe. Mas quando carimbam a data de validade no seu corpo, a coisa muda de figura. O cronômetro ganha som e cada andada aflige. Algo parecido com ter de fazer um gol nos últimos segundos do segundo tempo. Acelera, vai com tudo e dá seu melhor. Ou pendura logo as chuteiras, entrega o jogo e se dá por vencido. Triste se dar por vencido, né? Já morre antes, por conta.
Não me importo muito de morrer. Não que eu queira, não tenho a menor pressa. Que fique bem claro. Temo o sofrimento, não a morte propriamente dita. Porque, se tiver prorrogação e vidas após a morte, vai ser beleza. Se não tiver, é game over. Não vou nem saber mesmo, então está tranquilo também.
O pior da morte, pelo menos para mim, é imaginar os meus filhos sentindo falta de mim. Sou facilmente substituível em todo o resto. Mas deixar filho sozinho é minha pior agonia.
Lisa já havia perdido a mãe muito nova. E dela só tinha a vaga lembrança. A possibilidade de que o tempo fosse amarelando sua própria lembrança junto com as fotos lhe doeu. Ser esquecida é duro.  Mas não poder ficar na lembrança de quem tanto se amou, é ainda pior.
Foi assim que Lisa deu um cavalo de pau na sua história. Deve ter chorado, sim e muito. Não tinha a vida toda. Mas investiu na vida possível. Aproveitaria o que tinha, em vez de sentar e chorar pelo que não teria mais. Felicidade é decisão interna. Independe de dinheiro, fama, e pelo visto, saúde também. Lisa decidiu com o marido que construiriam juntos as melhores memórias de um tempo feliz.
Eles tinham um dinheiro guardado. Engraçado é que o hábito é poupar para imprevistos. Nos imprevistos, geralmente, o que nos vem à mente é desgraça. Poupamos para desgraças? Para coisas ruins que podem nos acontecer? É bom ter reservas para qualquer eventualidade.
Lisa se submeteu à quimioterapia. Ficou careca. Mas não se entregou. Planejaram viagens. Pegaram as filhas e viajaram para Lanzarote, Bulgária e Turquia. Resolveram casar de novo, para que as filhas pudessem participar da cerimônia. Comemoraram tão intensamente a vida que lhes restava que o tumor diminuiu a ponto de quase não ser mais visível.  E o risco de morte foi descartado.
Milagre? É o milagre da vida. A vida bem vivida faz milagres em todos nós. Vejo mágoa virar doença, se cristalizar em todo tipo de mal e de dor. Temos nossas coleções de mágoas e desilusões. Vamos espalhando descuidadamente pelo caminho. Como roupa suja, usada, esperando o dia de lavar. Não lavamos. Nem recolhemos.
Carpimos despudoradamente, gastamos um tempo mais precioso do que se imagina. Será que o contrário é verdadeiro e felicidade cura? Será que o amor pela vida produz mais tempo de vida?
Seríamos um espécie de bomba-relógio pronta a se autodestruir ou, ao contrário, se auto reconstruir? Porque, se for assim, vale o investimento na opção de ser feliz. E mergulhar mesmo com medo, quando a vida convidar.
Há religiões que acreditam que os desafios vêm para que a gente aprenda, melhore, cresça. Nem sempre a gente percebe. Muitas vezes é bem difícil mesmo e, ao invés de melhorar, a gente encrua. Mas se é viver ou viver, que se desfrute plenamente nossa melhor e única opção.
O amor adoça as lembranças amargas que se cristalizam e nos adoecem. O cuidado e a delicadeza de querer se bordar na memória alheia, passando por cima de todo o medo e de toda a dor, isso é prova de amor. O amor cura.



ARTUR XEXÉO - Quando eu tinha 10 anos

Quando eu tinha 10 anos, eu morava na Miguel Lemos, estudava no Mallet Soares e me preparava para fazer a primeira comunhão na São Paulo Apóstolo.

Todo mundo se lembra de Gagarin, mas, quando eu tinha 10 anos, quem fazia sucesso era Titov, que, aos 26 anos, tornou-se o mais jovem astronauta de todos os tempos. Ou cosmonauta, como se dizia quando eu tinha 10 anos.Titov foi também o primeiro homem a dormir no espaço. Existe uma cratera na face oculta da Lua que foi batizada de Titov.

Num patrocínio da Casa Fernandes, a TV Rio apresentava “Ivon Cury é assim”, todas as quintas-feiras, às 21h05min, quando eu tinha 10 anos. Mas eu não assistia porque, na mesma hora, na TV Tupi, tinha “Espetáculo Tonelux”, com Consuelo Leandro, Grande Otelo, Neide Aparecida, Bené Nunes, o balé de Juan Berardi, os textos de Haroldo Barbosa e a direção de Geraldo Casé. E toda sexta-feira, às 21h42min, tinha “Travessuras do Golias”, também na Tupi

Quando eu tinha 10 anos, quem queria parar de fumar usava Nicotiléss, que era “inofensivo ao organismo”. Mas ninguém queria parar de fumar quando eu tinha 10 anos.

Todo mundo aprendia inglês no Ibeu, francês na Aliança, latim no colégio e não existia outra língua, quando eu tinha 10 anos.

Quando eu tinha 10 anos, o Rubem Braga anunciou numa crônica que iria ser embaixador do Governo de Jânio Quadros. Ao mesmo tempo, declarava que estava gripado. Só Rubem Braga sabia dar a mesma relevância a um cargo de embaixador e a uma gripe.

Compravam-se aparelhos de ar condicionado Westinghouse na Casa Garson, voava-se para Brasília em quadrimotores de alta classe da Real, usavam-se camisas Volta ao Mundo, quando eu tinha 10 anos.

Quando eu tinha 10 anos, inauguraram uma estátua do Bartolomeu Mitre em frente à Embaixada da Argentina.

As festas de aniversário eram animadas com bolos de sorvete Kibon. Eu abria O GLOBO para fazer o Jogo dos Sete Erros e ler as historinhas do Mandrake. Meu padrinho morava no Leblon, mas eu nunca ia lá por que era longe pra chuchu. Quando eu tinha 10 anos, dizia-se longe pra chuchu.

Quando eu tinha 10 anos, Maysa gravou um disco em Nova York no qual cantava pela primeira vez uma bossa nova, “Quem quiser encontrar o amor”, de Geraldo Vandré. Desde então, Vandré e a bossa nova nunca mais foram vistos juntos.

Quando eu tinha 10 anos,  a matogrossense Maria Stael Abelha, renunciou, e o título de Miss Brasil foi transferido para a gaúcha Vera Maria Brauner Menezes. Ela ficou em segundo lugar no Miss Beleza Internacional, ganhou os títulos de Miss Trajes Típicos e Miss Oratória e ainda quatro mil dólares. Com o dinheiro, comprou uma casa para a mãe. Quando eu tinha 10 anos, uma casa valia quatro mil dólares.

Eu fui ao Cine Riviera assistir a “Marido de mulher boa”, com Zé Trindade e Renata Fronzi, mas eu queria mesmo era ir ao Paissandu para ver “Vermelho e negro”, com a Danielle Darrieux, quando eu tinha 10 anos.


Quando eu tinha 10 anos, Walter Pinto apresentava no Teatro Recreio “O diabo que a carregue... lá pra casa”, “com a nova estrela Iris Bruzzi”. No Teatro Ginástico, Fernanda Montenegro, Italo Rossi e Sergio Britto estavam em cartaz com “O beijo no asfalto”. Morineau ocupava o Teatro Dulcina com “Frenesi”. E ainda havia uma campanha nos jornais que  implorava praticamente todos os dias: “Vamos ao teatro!”




sábado, 16 de agosto de 2014

ISABEL CLEMENTE - Pai de menina, esse incompreendido

Ele aprendeu brincadeiras, aderiu aos gostos 
e entrou de cabeça no universo feminino, 
onde é praticamente um infiltrado
Ele vigiou como um cão de guarda sua menina sendo levada para o berçário e constatou que, entre tantos bebês iguais, nenhum era como sua filha. Tem as mãos grandes o bastante para segurá-la com uma só enquanto a outra espalha o sabonete delicadamente pelo pequeno corpo. Ele não é o ás dos penteados, mas recorre a uma tiara para enfeitar a filha. O colo do pai é mais alto, mais seguro, e a garupa sobre os ombros, o lugar mais desejado durante um passeio. Ele aprendeu a dar laços em vestidos e se emociona com a música da Tinker Bell. Canta "Let it Go" aos berros durante a viagem. Brinca de escravos de Jó. Inventa parlendas. Já se vestiu de Barney e Papai Noel.

Chorou quando o vagalume morreu e foi parar ao lado da estrelinha amada em A Princesa e o Sapo. Curte Galinha Pintadinha. Ele não forra a tábua da privada. Prefere segurar a filha no alto, a salvo dos germes e da mesmice.

Reaprendeu a andar de patins. Conta histórias de fadas que fazem tudo errado. Toma as dores do Lobo Mau, nem sempre é politicamente correto e comprou um álbum extra de princesas para desovar as figurinhas repetidas que passou a colecionar com a filha. Ele se derrete todo quando a pequena criança dorme em seu peito e não tá nem aí para os manuais que sugerem o berço. 

Não gosta do momento "com quem será" na festa de aniversário e acha o fim da picada se referirem a ele como "fornecedor" . "Nada a ver, pô", costuma dizer. Se irrita com garotos violentos insensíveis à sua menina delicada e quase explode de orgulho quando ela dá cambalhotas no trepa-trepa e se sustenta pendurada por mais tempo do que muito menino. Ele é bravo na hora da bronca, mas a filha é "a flor do seu jardim". 

Ele ensinou sua menina a subir em árvores, andar a cavalo e a não ter medo de onda. Arrotou pra ela rir e tentou ensinar a besteira depois. As brincadeiras mais emocionantes e violentas são todas dele, e a filha adora. Tem sempre a explicação mais completa e complicada sobre o dia e a noite, as estrelas e os cursos d’ água. Cisma de introduzir conceitos elaborados demais até a filha se distrair.
Entrou de cabeça no universo feminino. Confuso diante do inesperado processo que transformou sua menina em mulher, continua encantado. Acha que 21 anos é uma idade razoável pra começar a namorar e já pensou em matricular a filha no Convento das Clarissas Descalças. Recato não faz mal a ninguém. 

Está sempre pronto para levá-la e buscá-la na festa, mesmo que seja no fim do mundo. Saia curta, para ele, bate no meio do joelho ou muito perto da canela. O dia que ela chorou decepcionada com alguém, teve ímpetos de soltar uns palavrões e maldizer o insensível, mas abraçou a filha e ofereceu o seu silêncio. Estará sempre por perto para apoiá-la. 

Recebeu o primeiro namorado com a cara bastante séria e, solene, perguntou suas intenções. Disse que estava brincando, deu um tapinha no rapaz, mas, no fundo, não estava. Adora a ideia da sua menina querer viajar, fazer um intercâmbio talvez. Sempre tem ótimas ideias.
"Podemos ir todos juntos!"
"Pai..."
"Que foi?"
Ele é pai de menina, um incompreendido.





BOCEJO: VOCÊ É UM DOS MEUS! – Marcia Triunfol Elblink

Um dos grandes mistérios da biologia moderna é o bocejo! Existem muitas teorias sobre o bocejo mas a verdade é que até hoje ninguém sabe ao certo qual seria a função desse comportamento exibido por todos vertebrados, dos peixes aos seres humanos. Ou seja, ninguém sabe pra que diabos serve o bocejo. Há teorias que dizem que o bocejo estaria ligado a respiração, outras dizem que é uma forma de obter mais oxigênio quando mais se precisa (no meio de um filme chato?), outras que teria ligação com a coluna vertebral e que seria uma forma de alongá-la. De verdade...ninguém sabe. Mas uma coisa todos sabem: bocejar é um comportamento contagiante. Um boceja aqui, o outro em seguida boceja ali.

Acredita-se que o aspecto contagiante do bocejo seja uma expressão de empatia entre os indivíduos de uma mesma espécie. Seria uma forma de contágio emocional pelo qual o indivíduo mostraria pro outro que ele é capaz de sentir e expressar o mesmo que o outro. Irene, que muito já pensou sobre o bocejo, tem outra teoria. Ela acredita que o bocejo seja uma forma do indivíduo sinalizar pro outro que ele está dando um tempo, o que de fato significaria dizer que não está querendo  nenhuma interação com o outro, seja ela sexo, briga, brincadeira ou assistir uma aula mega chata. E ao contagiar o outro através do bocejo, o indivíduo estaria trazendo o contagiado para a mesma “vibe” que o bocejador. Isso faria com que aquele inicialmente interessado em sexo, briga ou brincadeira também perdesse o interesse pela atividade em questão. Ou seja, o bocejo com seu caráter contagiante seria um modulador da vida em sociedade, um sincronizador de interesses momentâneos. “Se você não está a fim, entendi...Também perdi a vontade”. Assim falaria Irene.

Mas será que esse contágio funciona da mesma forma em outras espécies? Um estudo publicado esta semana na revista PeerJ, que é uma revista com uma nova proposta para o já sabido fracassado processo de revisão de pares, compara o efeito contagiante do bocejo em seres humanos com o de outra espécie de primatas, o Pan paniscus, ou simplesmente chimpanzé.

Os pesquisadores passaram aproximadamente 500 horas observando o comportamento dos macacos moradores de dois zoológicos na Holanda e também de seres humanos (esses não eram moradores do zoológico...). O estudo selecionou cinco variáveis para registro, são elas: A hora que foi dado o bocejo, a identidade do bocejador e daqueles presentes que notaram o bocejo (chamados de observadores), se houve ou não contágio do bocejo num intervalo de até 3 minutos após o bocejo, tempo de latência do bocejo dado pelo contagiado e sexo de todos os envolvidos, do bocejador e daqueles contagiados.

Os pesquisadores observaram que macacos e seres humanos não diferem nem no tempo que levam e nem na forma como respondem ao bocejo de outro indivíduo qualquer da mesma espécie. No entanto, em seres humanos, a resposta ao bocejo é potencializada caso haja uma estreita relação entre o bocejador e o observador. Ou seja, quando o bocejador tem um forte laço com o observador, as chances do observador ser contagiado pelo bocejo do bocejador são muito maiores do que nos casos onde o bocejador não tem relação com o observador. Isso significa que as chances de você responder ao bocejo de um familiar, amigo ou colega são maiores do que as chances de se contagiar pelo bocejo de um desconhecido.

Se o bocejo de fato é uma expressão de empatia, o achado é então muito claro. Estamos pouco nos lixando para a forma como o outro, que não tem um estreito laço com a gente, está se sentindo. Mas quando o assunto diz respeito a um dos nossos, a coisa muda de figura. Isso ilustra bem o caráter sectário e separatista do ser humano e a supervalorização daquele que nos é próximo. É possível que este comportamento tenha sido fundamental para manter as famílias, tribos e grupos unidos ao longo da evolução humana.


Pode ser também que o efeito contagiante do bocejo tenha funcionado como uma linguagem pela qual o contagiado diria ao bocejador: eu reconheço você. Você é um dos meus!





sexta-feira, 15 de agosto de 2014

WALCYR CARRASCO - Arte transforma

 Em vez de campeã de suicídios, minha cidade natal
agora é berço de todo tipo de artista e criador

Nasci numa pequena cidade do interior de São Paulo, Bernardino de Campos. Meus avós vieram da Espanha e foram colher café em fazendas da região, assim como centenas de imigrantes, italianos também. Estruturada em torno da estrada de ferro, a antiga Sorocabana, onde meu pai trabalhava, a cidade não cresceu de forma expressiva. Antigos cafezais permanecem abandonados em torno dela. A estrada de ferro fechou. O número de habitantes? Cerca de 11 mil. Meus pais se mudaram quando eu tinha 3 anos de idade. Passei todas as minhas férias, quando criança, em Bernardino, na casa de minha avó paterna, Rosa. Ainda reconheço ruas e casas. Há muito tempo não tenho nenhum parente bem próximo na cidade. Meus primos vivem em São Paulo, como eu; meus tios e meus avós já se foram. Mas sinto uma afinidade com Bernardino. Raízes contam na vida de alguém.

Por que falo tudo isso?

Há dez anos fui convidado para participar do primeiro Festival de Teatro de Bernardino de Campos (Festar), com grupos de várias cidades do interior. Fui, é claro. Gostei de ver o entusiasmo pelas peças, a alegria dos grupos em participar. Era uma novidade. Conversando com as pessoas, descobri que Bernardino se transformara numa campeã de suicídios. A tal ponto que, quando alguém ia comprar corda, já diziam, meio brincando, meio assustados:

– Vai partir desta para melhor?

É que as pessoas sempre se matavam da mesma maneira, se enforcando. Eu mesmo, ao visitar uma tia-avó, me surpreendi ao constatar que não só ela não me reconhecia, como também, ao despertar, não sabia quem era o próprio filho, devido aos remédios que tomava. Fiquei triste, é claro. Olhei aquelas ruas desertas, onde a partir das 20 horas nada acontecia, e pensei:

– Que esperança, que perspectiva de vida há aqui?

Os anos se passaram, e não voltei à cidade. Para minha surpresa, no último fim de semana fui convidado a participar da nova edição do Festar, agora comemorando dez anos. É de admirar um festival de teatro no interior que dura dez anos. Soube depois que outras cidades também têm seus festivais, uma iniciativa que vale a pena aplaudir. Fui bem contente. Além de também escrever para teatro, penso que todos nós, da televisão, temos nossa primeira pátria nas artes cênicas. Ao chegar, descobri que Bernardino continua com suas dificuldades econômicas. Mas o prefeito apoia as artes. A secretária de cultura, Cibele, já montou uma escola de dança, teatro, para crianças e adolescentes – totalmente gratuita. Criou-se um baile para a terceira idade que, soube, bomba todos os fins de semana. Durante a semana do festival, as peças, infantis e adultas, tiveram casa cheia, mesmo às 23 horas, um dos horários de apresentação. Esperava, inicialmente, textos ingênuos, bem amadores. Preconceito meu. Entre os principais, havia Casa de bonecas, de Ibsen, sobre a independência e a dignidade da mulher; Pterodáctilos, criação de um grupo de Registro que vem arrebatando prêmios em festivais; e a peça Um pequeno animal selvagem, do grupo Os Cogitadores, de São José do Rio Preto, escrita por Zeno Wilde, autor paulista de vanguarda que já morreu. Era uma montagem forte, intensa, que não ficou em cima do muro. Pelo contrário, os atores não tiveram medo de chocar. Surpreso, pensei: “Arte não é só para encantar, também pode chocar, abrir uma janela para um universo que os espectadores não conhecem”. Aplaudi a peça de pé. Também vi uma montagem de um auto de São João, escrita e dirigida por uma garota da cidade, bem divertida. O que mais me impressionou foi ser um texto escrito, dirigido e interpretado por um grupo local. Teve de pedir roupas emprestadas para o figurino, ajuda de todos os tipos e até uma carroça para colocar no palco. (Como vão tirar, não me perguntem.)


Em certo momento, nas conversas, perguntei sobre os casos de depressão e suicídio. Estranharam. Alguém lembrou que isso acontecia, sim, em Bernardino há um certo tempo, mas agora não se ouve mais falar. Óbvio. As pessoas estão criando! Mexer com as cabeças não é tão tangível como construir um viaduto. Vi essas pessoas convivendo com música, teatro, dança, trocando experiências. A arte tem um profundo poder de transformação. É um lindo caminho, que começa a acontecer. E que com certeza cria novas consciências e um jeito novo de viver.



IVAN MARTINS - Dá pra perdoar?

O perdão é uma espécie de botão de reiniciar 
que permite aos casais recomeçar todos os dias

Acho que foi a Miriam Palma, amiga desde os tempos do cursinho, quem me contou que, dentro de 10 anos, todas as fotos de nós mesmos que hoje nos parecem feias ficarão bonitas. É só uma questão de tempo para que a beleza apareça. Nosso olhar precisa mudar.

O mesmo se aplica, me parece, à questão muito mais grave do ressentimento e do perdão. As coisas que hoje nos parecem inaceitáveis, e, por decorrência, imperdoáveis, com o passar do tempo talvez se mostrem verdadeiramente irrelevantes. Nem é preciso esperar 10 anos. Talvez cinco bastem. Ou mesmo 12 meses. Nosso olhar só tem de mudar.

Estou falando, claro, da relação entre duas pessoas, das coisas que acontecem no interior dos casais. Imagino pessoas que se amam ou se gostam – ou têm pelo menos a lembrança desse sentimento. Essas relações nos são tão caras e tão próximas que, nelas, o ato de perdoar é essencial. Talvez seja o gesto mais necessário e o mais frequente de quem partilha a vida com alguém.

Perdoar é como apertar um inesgotável botão de reiniciar: foi ruim ontem à noite, dormimos com raiva um do outro, esta manhã reiniciamos. A conversa foi muito dura, agora estamos mais calmos, que tal reiniciar? Eu fiz algo que a magoou, você reagiu com brutalidade, reiniciemos, por favor.

Estar com alguém, viver com alguém, é sinônimo de afrontar e ser afrontado. A cada dia, quase a cada momento. Os nossos egos, as nossas suscetibilidades tornam difícil o outro se mover ao nosso lado sem que nos incomode. Ele precisa ser imensamente atento, ou infinitamente delicado, para não causar nenhum atrito. Mas então, coitado, não seria humano. Seria alguém apenas tentando nos satisfazer – e rapidamente nos encheria de tédio.

Seres humanos inteiros, à vontade no mundo, disputam espaço mesmo com aqueles que amam. As pessoas se esbarram, se batem – no sentido figurado da palavra, por favor – e dessa refrega permanente, imperceptível para quem olha de fora, emerge a relação propriamente dita. Ela é o resultado de uma disputa constante e de uma colaboração incessante. Por isso é intensa e contraditória, por isso é viva – e por isso necessita, desesperadamente, do mecanismo apaziguador do perdão.

Somos terrivelmente exigentes com as pessoas que dividem a vida íntima conosco. Os nossos chefes, os nossos colegas, os nossos amigos gozam de uma tremenda margem de tolerância. A peguete, o bonitão que aparece de vez em quando, esses gozam de crédito para errar. Mas a namorada e o marido, aqueles que fazem parte da nossa vida, não. Esses não podem pisar fora da linha. Somos vigilantes e intolerantes com eles. Insuportavelmente intolerantes. Por isso é tão essencial que perdoemos - porque os estamos julgando e condenando a cada par de minutos, de uma forma que não fazemos com os demais.

Bem, às vezes as pessoas próximas nos fazem coisas graves. Elas nos machucam e traem a nossa confiança. Às vezes nos enganam. Às vezes se enganam. O resultado é sempre péssimo e quase sempre é impossível perdoar – na hora. Mas o tempo e o convívio com os nossos sentimentos produzem mudanças. Depois de um tempo de afastamento, depois de um período intenso de saudades e de considerações, podemos estar prontos a entender – desde que o orgulho ou nosso senso moral não se interponham. É preciso ter feito certas coisas na vida para entender porque os outros as fazem. Quem nunca andou no lado errado da calçada acha que a virtude é simples. Não é.
Minha impressão é que para perdoar quem nos magoa precisamos de duas coisas – uma sólida conexão afetiva e alegria.

A conexão faz com que o outro também sinta o que nos passa. Se eu estou morrendo e a criatura está lá, morta de rir, se esbaldando, não há o que perdoar – é mais o caso de esquecer. Mas em geral não é assim. Quando as pessoas se gostam, a dor as liga. O sentimento de falta é mútuo. Quem magoou quer voltar. A saudades dói, como dizia a velha música sertaneja. Então, por que não perdoar e reiniciar?

Outras vezes, em casos mais difíceis e demorados, é a alegria que nos faz perdoar. Ela permite que a nossa vida avance, permite que a gente recomece com outras pessoas, faz com aquele sentimento de mágoa seja varrido, lavado, esquecido entre as novas sensações de prazer e de carinho, senão de amor. Enquanto a gente rola na cama insone de raiva, enquanto o ressentimento ainda queima, é impossível perdoar. Mas, se a nossa vida anda, se a gente experimenta a alegria, vai se esquecendo daquilo que nos fazia tremer de indignação ou de tristeza. Então a mágoa passa e a gente perdoa sem perceber. Aí, quem sabe, na próxima curva da estrada aquela mesma pessoa, indultada pelo nosso perdão, reaparece para nos fazer feliz.
Alguém perguntará, racionalmente, qual a importância de perdoar depois de tanto tempo, quando aquilo que doía nem dói mais, e quando a chance de cruzar o outro na nossa estrada é cada dia mais remota. Eu diria que a importância é enorme, por algumas razões.

Não se deve andar pela vida levando mágoas desnecessárias. Quem perdoa descarrega um fardo e anda mais leve, porque deixou a dor para trás. Quem perdoa também resgata, recupera pedaços de si que estavam ligados àquele que não poderia ser lembrado. Nesse sentido, perdoar permite retomar a posse de seus próprios sentimentos e memórias. Às vezes, com sorte, esse perdão abra as portas para a recuperação das pessoas na nossa vida, de um novo jeito.

Uma vez, faz algum tempo, eu almoçava com uma amiga e falamos de uma pessoa comum, muito importante para mim. Ao longo da conversa, sem que me desse conta, comecei a falar dela de uma forma enternecida e alegre, como há muito não falava. Ao fazer isso, ao me permitir lembrar, de alguma forma ficou claro o buraco que aquela mulher deixara na minha vida. Dias depois, por essa porta entreaberta, entrou um sonho, o primeiro em anos em que não havia conflitos ou brigas, apenas afeto e intimidade. Foi como um resgate.

Foi como olhar para uma foto que me parecia horrível e perceber o quanto havia de beleza nela. Foram precisos quase 10 anos, mas o meu olhar, finalmente, mudara. No lugar da dor e do ressentimento, havia apenas um suave perdão.



quinta-feira, 14 de agosto de 2014

SENTIMENTOS DE INFERIORIDADE E SUPERIORIDADE - Antônio Roberto

O sentimento de inferioridade é fruto da imagem que cada um tem de si próprio. A auto-imagem é criada por opiniões inculcadas desde a infância e reforçada posteriormente por experiências vividas.
O que muita gente não sabe é que o sentimento de inferioridade é no fundo um sentimento de superioridade. É um sentimento de orgulho e onipotência.
Só se sente menos quem queria ser mais. Para quem quer ser Deus, ser humano é terrível. Desejamos ser onipotentes, oniscientes, onipresentes.
Quando nos deparamos com nossos limites e percebemos que somos transitórios, ignorantes e limitados pelo tempo, nos rejeitamos, nos sentimos inferiores. A baixa estima só ocorre quando nos comparamos com um modelo ideal de como “deveríamos” ser. Não existe ninguém superior ou inferior a não ser que nos comparemos. Cada pessoa é única e diferente das demais.
Cada um é de um tamanho, seja do ponto de vista físico, intelectual, emocional, social etc. Valorizar o que somos e temos em vez de valorizar o que falta é a única saída para o auto-amor. As conseqüências da inferioridade sentida aparecerão, sobretudo, nos relacionamentos. Pessoas com auto-estima baixa se relacionam mal. Tentam diminuir as outras pessoas com críticas e maus-tratos. É uma tentativa de se sentirem superiores.
A competição explícita ou velada também faz parte, e o que mais agrava é que confundimos o sentimento de inferioridade com humildade. Pessoas que se humilham, que falam mal de si próprias e que são submissas não são humildes.
A humildade é a capacidade de aceitar a realidade humana, com todas as suas mazelas e limites. Se não queremos sofrer, principalmente de depressão, devemos nos amar incondicionalmente.
Desenvolver nosso potencial, aquilo que nós somos, crescer cada vez mais e melhorar nossa vida é importante e necessário. Somos sementes que devem desabrochar. Isso é diferente de nos martirizarmos com pensamentos megalomaníacos, procurando em nós um super-homem que jamais existirá.



CONTARDO CALLIGARIS - O silêncio dos inocentes

Uma cultura pode morrer de sua própria covardia 
em defender as ideias que ela inventa e promove

O movimento Estado Islâmico (EI) controla uma parte consistente do território que pertencia previamente à Síria e ao Iraque (sei que "consistente" é vago, mas as cidades passam de mão em mão a cada dia). Nesse vasto território, o EI proclamou um califado, e seu líder, em 11 de julho, ordenou a mutilação genital de todas as mulheres entre 11 e 46 anos.

A mutilação genital consiste na ablação do clítoris e, em algumas tradições, de parte dos lábios da vagina. A operação geralmente é feita sem anestesia e sem condições de assepsia. Essa tortura com consequências potencialmente mortais garantiria que as mulheres não sintam (mais) prazer sexual, ou seja, como noticiaram as agências de imprensa (Folha de 25/07), evitaria "a expansão da libertinagem e da imoralidade" no sexo feminino.

Segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), a medida do califado pode atingir 4 milhões de mulheres.

Será como em julho de 1994, quando assistimos de longe, indignados e resignados, ao massacre de mais de meio milhão de pessoas da etnia tutsi, em Ruanda?

Será como em 1995 (de novo, em julho), quando assistimos ao massacre de Srebrenica, na Bósnia? Neste caso, um mês depois, o bombardeio dos sérvios-bósnios pela Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) colocou um fim à guerra da Bósnia. Foi tarde para os 8.000 de Srebrenica, mas foi ao menos isso.

Meus furores intervencionistas são raramente abstratos. Há intervenções impossíveis porque é dificílimo tomar partido, e outras que custariam mais vidas do que salvariam. Também me envergonha, na hora de me indignar, o fato de que os que se armariam e arriscariam sua vida seriam outros, mais jovens do que eu.

Mesmo assim, penso que o genocídio em Ruanda, em 1994, poderia ter sido evitado e que o bombardeio das posições dos sérvios-bósnios em 1995 poderia ter acontecido antes, evitando o massacre de Srebrenica.

No caso de Ruanda, foi dito mil vezes que o Ocidente deixou o horror acontecer porque o coração da África está longe, geográfica e culturalmente. Da mesma forma, foi dito que a Otan interveio na Bósnia por se tratar de um horror "em casa", na Europa.

Mas a intervenção na Bósnia tornou-se possível e "necessária" também por uma outra razão, um pouco mais complexa.

Na guerra da Bósnia, as grandes vítimas eram os bósnios muçulmanos, ameaçados de extermínio pelos sérvios-bósnios (ortodoxos). Atrás de qualquer consideração geopolítica, os membros europeus da Otan (sobretudo Alemanha, França e Inglaterra) podiam enxergar, no ódio dos sérvios-bósnios, uma caricatura do preconceito de suas populações contra os muçulmanos imigrantes.

Ou seja, talvez a gente seja especialmente motivado a intervir contra quem pratica horrores dos quais nós mesmos receamos ser capazes. É policiando os outros que a gente luta contra nossos próprios demônios.

Se a ordem do califado me indigna tanto é porque reconheço a sua estupidez: ela é a mesma que, apenas 200 anos atrás, levava psiquiatras europeus a cauterizar com ferro quente o clítoris de meninas que se masturbavam com uma frequência que pais e padres achavam excessiva.

Houve uma época (recente --e nem sei se acabou) em que o desejo feminino nos fazia horror, e a gente estava disposto a qualquer coisa para silenciá-lo. É esse passado que nos daria o direito de intervir.

Não se trata de querer abolir uma diversidade cultural. Certamente há mulheres, no califado, dispostas a ser mutiladas para continuar pertencendo plenamente à cultura na qual elas vivem. Mas o que acontecerá conosco se escutarmos os gritos das que não concordam e deixarmos que se esgotem, até que reine o silêncio dos inocentes sacrificados?

Em Veneza, no Teatro La Fenice, três semanas atrás, assisti a uma apresentação (única) de "Hotel Europa", de Bernard-Henri Lévy (publicado pela editora Marsilio numa edição bilíngue, com textos em italiano e francês). É o monólogo de um intelectual que, num hotel de Sarajevo, prepara uma conferência impossível sobre a Europa e seus valores. Lévy foi marcado pela sua presença na Bósnia durante os anos da guerra e acredita na necessidade moral de intervir nos horrores da casa dos outros.


Concordo ou não, tanto faz; de qualquer forma, saí da peça com a convicção de que uma cultura pode morrer de sua própria covardia em defender as ideias que ela inventa e promove. E nossa cultura é ameaçada por esse destino: ela tem, ao mesmo tempo, um repertório fantástico de ideias e uma grande timidez na hora defendê-las --até porque uma dessas ideias é que cada um deve ser livre de pensar como quer.