sábado, 4 de maio de 2013

MIGUEL FALABELLA - Alguns Tangos

 
 Passei a semana inteira com uma frase na cabeça. Uma coisa que Zezé Polessa me disse, uma madrugada dessas, no meio da zoeira de uma festa. Antes de arrumar sua cabeça, arrume sua casa. Acho que é da Dra. Nise da Silveira, se não me engano. Zezé me disse que gostava deste pensamento e eu acabei guardando as palavras, desejando escrever uma crônica a partir dela, mas o telefone não parou de tocar, tive que resolver detalhes de Capitanias Hereditárias, que está quase estreando, depois fui ensaiar as substituições em South American Way, de modo que quando finalmente me sentei e encarei a tela, já não havia mais sequer casa para arrumar, quanto mais cabeça. Havia somente uma imagem que se impôs, na calada da noite: a platéia vazia de um teatro em Buenos Aires há quase uma década atrás, na última apresentação de A Partilha, na montagem de lá.

Nós atravessamos a platéia do Tabaris, em silêncio, pois as despedidas gostam de repentinos mergulhos internos. Cruzamos a passadeira vermelha, o olhar perdido nas curvas dos camarotes, acompanhando as espirais das colunas e alguém comentou que as espirais do tempo eram bem mais poderosas do que aqueles adornos. Aí, voltou o silêncio e a respiração começou acelerou, porque dizer adeus é sentir medo, de alguma forma. O medo do não reencontro, o medo dos corpos afastados pela multidão, o medo enorme cada vez que você dorme e não possa despertar, como na canção. Despedidas me deixam sempre com a sensação do menino apavorado, perdido no pavilhão.

A temporada de A Partilha, em Buenos Aires – lá chamou-se Nosotras que nos queremos tanto – estava terminada, depois de quase três anos e muitas histórias. Doris del Valle, uma das estrelas do espetáculo, afastou-se da marquise iluminada do teatro e caminhou até um ambulante que fazia ponto, logo adiante. Voltou com uma bandeira argentina jogada sobre o corpo, o sol brilhando na altura do umbigo e guardo essa fotografia na lembrança: a marquise iluminada, a atriz loura me estendendo a bandeira, um carinho, uma peça no jogo da memória. Tenho o retângulo de pano azul e branco até hoje e, curiosamente, ele guardou o perfume daquela madrugada em suas fibras.

O Tabaris não existe mais. Era um teatro lindo, não deveriam ter permitido que desaparecesse. O eterno descaso pelo patrimônio cultural nas Américas saqueadas termina por destroçar aquela geografia que aprendemos a amar, no correr da vida. E vamos absorvendo os golpes, cada qual a sua maneira – convenhamos, não é coisa fácil de se administrar internamente, assistir ao espetáculo da destruição do mundo que conhecemos. Sempre obrigados a redesenhar o mapa, sempre em busca do caminho de casa, eu ia pensando, enquanto arrumava as malas, novamente rumo a Buenos Aires, desta vez com a história da pequena notável, que vamos cantar por lá. Ainda uma vez, a baiana vai mostrar o que tem e exibir, orgulhosa, a esperança que traz em seu tabuleiro. Esperança que, diga-se de passagem, dividimos com os irmãos argentinos, cuja história se mistura com a nossa, através dos tempos – uma saga de sangue e de dor, como no melhor dos melodramas. Vamos todos - mais de trinta, como um bando de pássaros migratórios em busca de algum verão e eu, particularmente, em busca de algumas saudades.

Terminei a mala e corri para a estréia de Adriana Calcanhoto, porque sou fã de sua música e da poesia de seu coração urbano, atento às mudanças do mapa. Sempre que a ouço cantar, entendo que ela generosamente divide conosco aquele momento de vida enquadrado na janela do carro que vibra uma corda dentro. Talvez por causa da luz nos cabelos da moça que passa, talvez porque o mar estivesse ao fundo, sabe Deus! Mas aquele fotograma faz toda a diferença naquele dia, talvez o dia em que fomos mais felizes e não nos demos conta, tanta coisa ainda por fazer!

Fui com Stella Miranda e, lá pelas tantas, quando Adriana nos passou a sua cantada e perguntou: depois de ter você, poetas para quê?, Stella me sussurrou ao ouvido que uma canção daquelas dava vontade da gente amar sem pudor e ter o peito outra vez abrasado pela paixão.

- Amor sempre decepciona. – eu disse, tentando não soar amargo e, entrar no coração da poeta, os olhos arregalados, retendo cada partícula da luz. – Amor tem prazo de validade.

- Não, o próximo. – Stella me disse, sorrindo, como quem beija as palavras. – Nunca, o próximo.

Achei que ela tinha toda razão e corri de volta para casa, antes que o dia raiasse e, com a chegada daquela dama grega de dedos róseos, eu finalmente ganhasse as alturas, em busca do próximo amor.

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