sábado, 28 de janeiro de 2012

LUIS FERNANDO VERISSIMO - A compensação

Não faz muito, li um artigo sobre as pretensões literárias de Napoleão Bonaparte. Aparentemente, Napoleão era um escritor frustrado. Tinha escrito contos e poemas na juventude, escreveu muito sobre política e estratégia militar e sonhava em escrever umgrande romance. Acreditava-se, mesmo, que Napoleão considerava a literatura suaverdadeira vocação, e que foi sua incapacidade de escrever um grande romance e conquistar uma reputação literária que o levou a escolher uma alternativa menor, conquistar o mundo. Não sei se é verdade, mas fiquei pensando no que isto significa para os escritores dehoje e daqui. Em primeiro lugar, claro, leva a pensar na enorme importância que tinha aliteratura nos séculos 18 e 19, e não apenas na França, onde, anos depois de NapoleãoBonaparte, um Vitor Hugo empolgaria multidões e faria História não com batalhões ecanhões mas com a força da palavra escrita, e não só em conclamações e panfletos mas,muitas vezes, na forma de ficção. Não sei se devemos invejar uma época em que reputaçõesliterárias e reputações guerreiras se equivaliam desta maneira, e em que até a imaginaçãotinha tanto poder. Mas acho que podemos invejar, pelo menos um pouco, o que a literaturatinha então e parece ter perdido: relevância. Se Napoleão pensava que podia ser tãorelevante escrevendo romances quanto comandando exércitos, e se um Vitor Hugo podiamorrer como um dos homens mais relevantes do seu tempo sem nunca ter trocado a palavrae a imaginação por armas, então uma pergunta que nenhum escritor daquele tempo se faziaé essa que nos fazemos o tempo todo: para o que serve a literatura, de que adianta a palavraimpressa, onde está a nossa relevância? Gostávamos de pensar que era através dos seusescritores e intelectuais que o mundo se pensava e se entendia, e a experiência humana eraracionalizada. O estado irracional do mundo neste começo de século é a medida do fracassodesta missão, ou desta ilusão.Depois que a literatura deixou de ser uma opção tão vigorosa e vital para umhomem de ação quanto a conquista militar ou política ― ou seja, depois que virou umaopção para generais e políticos aposentados, mais compensação pela perda de poder do que poder, e uma ocupação para, enfim, meros escritores ―, ela nunca mais recuperou a suarespeitabilidade, na medida em que qualquer poder, por armas ou por palavras, é respeitável.Hoje a literatura só participa da política, do poder e da História como instrumento oucúmplice.E não pode nem escolher que tipo de cúmplice quer ser. Todos os que escrevem noBrasil, principalmente os que têm um espaço na imprensa para fazer sua pequena literaturaou simplesmente dar seus palpites, têm esta preocupação.Ou deveriam ter. Nunca sabemos exatamente do que estamos sendo cúmplices.Podemos estar servindo de instrumentos de alguma agenda de poder sem querer, podemos estar contribuindo, com nossa indignação ou nossa denúncia, ou apenas nossasopiniões, para legitmar alguma estratégia que desconhecemos.Ou podemos simplesmente estar colaborando com a grande desconversa nacional, aque distrai a atenção enquanto a verdadeira história do País acontece em outra parte, longedos nossos olhos e indiferente à nossa crítica. Não somos relevantes, ou só somos relevantesquando somos cúmplices, conscientes ou inconscientes.Mas comecei falando da frustração literária de Napoleão Bonaparte e não toquei nasimplicações mais importantes do fato, pelo menos para o nosso amor próprio. Se Napoleãosó foi Napoleão porque não conseguiu ser escritor, então temos esta justificativa pronta parao nosso estranho ofício: cada escritor a mais no mundo corresponde a um Napoleão amenos. A literatura serve, ao menos, para isso: poupar o mundo de mais Napoleões. Masexiste a contrapartida: muitos Napoleões soltos pelo mundo, hoje, fariam melhor setivessem escrito os romances que queriam. O mundo, e certamente o Brasil, seriam outros se alguns Napoleões tivessem ficado com a literatura e esquecido o poder. E sempre teremos a oportunidade de, ao acompanhar a carreira de Napoleões, sub- Napoleões, pseudo-Napoleões ou outras variedades com poder sobre a nossa vida e o nosso bolso, nos consolarmos com o seguinte pensamento: eles são lamentáveis, certo, masimagine o que seria a sua literatura.Da série Poesia numa Hora Destas?!Deus não fez o homem, assim, de improviso em cima da divina coxa numa horavaga.Planejou o que faria com esmero e juízo (e isso sem contar com assessoria paga).Tudo foi pensado com exatidão antes mesmo do primeiro esboço, e foram anos deexperimentação até Deus dizer que estava pronto o moço.Mas acontece sempre, é sempre assim não seria diferente do que é agora.A melhor idéia apareceu no fim e dizem que o polegar Ele bolou na hora.
Luis Fernando Verissimo


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