sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

LUIZ FERNANDO VERISSIMO - Desmoronando

Primeira crônica depois que o escritor teve alta
Juntaram as minhas partes, me espanaram e me mandaram para casa.
 Eu não disse para ninguém que deveria estar morto

O prédio de lata estava desmoronando e eu estava dentro dele, desmoronando também. Caía de bruços como um super-herói que esqueceu como voar, com a cara virada para o chão, ou para o saguão do prédio, que se aproximava rapidamente. Se eu me espatifasse no saguão, certamente morreria, pois seria soterrado pela lataria em decomposição que acompanhava meu voo. O fim do sonho seria o meu fim também. Mas a queda era interrompida, a intervalos, como naquelas “lojas de departamento” em que o elevador parava, o ascensorista abria a porta e anunciava: “Lingerie”, “adereços femininos” etc. Levei algum tempo para me dar conta que aquelas paradas não eram só para interromper o terror da queda. Eram oportunidades de fuga. O sonho me oferecia alternativas para a morte, se eu fizesse a escolha certa. Ou então me dava um minuto para pensar em todas as escolhas erradas que tinham me levado àquele momento e à morte certa: os exageros, os caminhos não tomados e as bebidas tomadas, as decisões equivocadas e as indecisões fatais, o excesso de açúcar e de sal, a falta de juízo e de moderação. Não posso afirmar com certeza, mas acho que ouvi o ascensorista fantasma dizer, em vez de “lingerie” e “adereços femininos”: “Desce aqui e salva a tua alma” ou “Pense no que poderia ter sido, pense no que poderia ter sido...” As paradas não eram para diminuir o terror, as paradas eram parte do terror! Eu não tinha tempo nem para a fuga nem para a contrição. E o saguão se aproximava. Decidi me resignar. É uma das maneiras que a morte nos pega, pensei: pela resignação, pela desistência. Meu corpo não me pertencia mais, era parte de uma representação da minha morte, o protagonista de um sonho, absurdo como todos os sonhos. Talvez a morte fosse sempre precedida de um sonho como aquele, uma súmula de entrega e renúncia à vida, mais ou menos dramática conforme a personalidade do morto. Um sonho com anjos e nuvens rosas ou um sonho de destruição, como eu merecia. Eu nunca saberia por que meu sonho terminal fora aquele, eu desmoronando junto com um prédio de lata. Mas nossas explicações morrem com a gente.

No fim do sonho me espatifei no chão do saguão e esperei que o prédio caísse nas minha costas. Em vez disso, ouvi a voz do dr. Alberto Augusto Rosa me perguntando se eu sabia onde estava. “Hospital Moinhos de Vento”, arrisquei. Acertei. Lá juntaram as minhas partes, me espanaram e me mandaram para casa. E eu não disse para ninguém que deveria estar morto.

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3 comentários:

  1. Que bom que foi só um pesadelo! E, obrigada por ter acordado.bjs.

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  2. Muito agradecidapor ter acordado do pesadelo.bjs.

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  3. Doutor Luiz Fernando Veríssimo,
    O Senhor não leu o manual de vida e morte, já que ele ainda não foi escrito.
    Escolher entre este ou aquele vinho, este ou aquele prato, este ou aquele destino de viagem, ou o quanto escolher, são parte de escolhas possíveis nesta vida (e sua finitude, como você gosta de brincar).
    Mas você está escrevendo o seu manual da vida, que serve como anexo, adendo ou errata no manual pra vida de tantos apreciadores de seus talento, humor, temperamento tímido, mas monstruosamente humano e real.
    Tornou-se Doutor da vida. Jamais nos abandonará. Estou feliz e, acredito, que uma horda de seguidores também está pela sua recuperação. Talvez a vida ainda nos brinde com mais uma ou duas décadas de você entre nós. Isso será uma dádiva, de parte a parte. Cuide-se e, se puder, continue cuidando de nós, pobres mortais. Feliz anos novos!

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