quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

MIGUEL FALABELLA – Alfazema


Chove no sítio. Uma chuva gorda que vai lavando a terra e deixando tudo com um brilho de esmeralda. Uma frase de Dickens chega de mansinho: não devemos ter vergonha de nossas lágrimas, porque elas são como a chuva que lava a poeira dos nossos corações ressecados. Eu adoro Dickens. Era assim que Esther Jablonski dizia, na montagem de “Mephisto”, na adaptação teatral de Ariane Mnouchkine para o livro de Klaus Mann, há já alguns anos. A chuva cai sobre a serra e eu, de nariz colado na vidraça, lembro daquele momento. Wilker dirigiu e éramos um bando no palco. Entrávamos em cena por ordem alfabética e Luís Maçãs colocava-se logo a minha frente, na penumbra da coxia, à espera do terceiro sinal. Nunca fomos muito íntimos, acho mesmo que o meu exagero às vezes o constrangia, mas era um belo ator no palco e eu fiquei triste quando soube que ele finalmente desistiu de esperar pelo terceiro sinal. Isso também já faz algum tempo. 

Estranhamente, porém, hoje eu lembro de sua nuca, parado ali, a minha frente, os colegas sussurrando frases, a música que se fazia ouvir, antes de entrarmos em cena. Percebo os contornos de sua silhueta, por detrás da cortina de água que despenca dos céus. Afasto a imagem com dificuldade e tento focar os projetos de árvores que plantei na frente da casa e que, a despeito dos comentários descrentes, de que não vingariam, resistem às intempéries do tempo com um vigor emocionante.

A macieira, que eu plantei ainda outro dia, já floriu e me ofereceu um fruto, pequeno, sem muito viço ou beleza, mas ainda assim um fruto. Digam o que disserem, é uma maçã. Solitária e de cor indefinida, parece grande demais para o caule recém brotado. Mas é um fruto, resultado do próprio esforço e agradeci do fundo do coração. A figueira, irmã de plantio, recusava-se a brotar e eu, na última vez em que estive lá, dei-lhe dois tapas no caule seco e uns gritos bem dados. A preguiçosa deixou de fazer manha e abaixa as folhas tenras sob a chuva que cai, eu vejo daqui. Brotou finalmente, achou que valia à pena.  O galho de amoreira, fincado na terra, não ouviu nenhum apelo e abriu mão de qualquer possibilidade de verde. Simplesmente, deixou-se morrer. As outras árvores em volta, excitadas com a adolescência de botões e flores, parecem não se incomodar com ela. Sua morte é apenas mais um acontecimento na ciranda dos dias. 

Eu é que fiz um estardalhaço, tentando reanimar a condenada. Tudo em vão. Esqueci daquela máxima que deveria nos nortear a existência: não existem sucessos ou fracassos. O que há são uma fileira de acontecimentos. Depois da chuva, vou arrancá-la da terra e queimá-la na lareira, numa cremação simbólica e rápida. Não há lugar para sentimentalismo na natureza. Tudo é como deveria ser – o pranto fica por conta dos nossos corações apegados e dos céu que, volta e meia, despeja sua mágoa lá de cima.

Mais tarde, quando a lua brincar no meio do breu e a chuva parar, vai ter uma grande quadrilha de tatus no meio do gramado úmido. Eu tenho certeza de que eles se sabem observados, embora eu não faça nenhum ruído, imóvel, na escuridão da casa.  Aos poucos, eles vão chegando, em fila, cruzando a extensão do gramado, indiferentes aos uivos dos cães. Brincam por ali, agradecidos pelas visitas do final de semana (o que determina a prisão noturna dos cachorros) e, depois, com aquele passo miúdo, desaparecem na mata. Vou deixar algumas frutas no meio do gramado, como oferenda. Eles vão entender.

Olhar a chuva que cai é sempre um exercício para a alma. Uma daquelas coisas que sempre vemos nos filmes e que, de vez em quando, é bom fazer. Olhar fixamente para a paisagem, lavada liberta os nós e deixa nossos corações prontos para navegar no mar da lembrança. É uma forma de meditar, eu acho. E cada vez mais eu acredito que meditação é uma coisa importante, fundamental. Gastamos tanto tempo com o corpo - com a aparência que inevitavelmente vai deteriorar-se - e estamos sempre nos esquecendo de exercitar a mente, na subjetividade. Não os exercícios intelectuais de sempre, não o afiar da lâmina, para que a inteligência seja cada vez mais cortante, mas a suavidade da mente que anda livre por aí, aparando as arestas e abrindo outros horizontes, outros estágios de consciência.

Agora mesmo, parado aqui, a respiração embaçando um retângulo da vidraça, eu desfio um rosário de contas de todas as formas e todos os jeitos, as miçangas mais preciosas de minha vida que me fazem sorrir e me emocionam e me conferem a melhor parte de ser humano. 

Olho para o mundo sob a água e percebo outros mundos, além, de tanto que olhei para o mesmo quadro. De repente, a vontade de fazer parte daquilo tudo, enfiar minhas raízes terra adentro e só ficar. Um ponto.

Como tenho convidados em casa, pulo a janela do quarto e fico olhando para o vale, enquanto a água é trazida pelo vento em chicotadas de pingos grossos, milhares deles. Um banho de chuva como há muito tempo eu não tinha. Depois, assim como veio, ela se vai e o céu se rasga ao meio, mostrando o papo amarelo. 

Um cheiro de alfazema entra pelas narinas e há um silêncio de pássaros por toda a parte. De onde virá essa essência, no meio da tarde? Certamente, vem da memória e não da terra encharcada.

Depois é um céu estrelado, um copo de vinho e as janelas abertas durante a madrugada, para que um pensamento voe livre, antes do mergulho do sono: hoje foi um dia de paz.

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